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“Ásperos Tempos”: a sombra da ditadura e o colapso das instituições

Já se fala no maior escândalo de sempre na curta Democracia Brasileira. Sérgio Moro é acusado de manobrar a prisão de Lula da Silva em troca da ascensão política. A analista Aline Piva denuncia uma “ditadura” encapotada.

Lula Livre

À época da prisão do insurreto Luís Carlos Prestes, nos anos 30, Jorge Amado escrevia que o Brasil estava atrás das grades. Eram “ásperos tempos” num país condenado a viver períodos alternados de “república da espada”, ditadura militar ou ditadura com o apoio dos militares. Hoje, são ”ásperos tempos” que escancaram as interferências de um juiz de primeira instância do Paraná, atual ministro da Justiça, na investigação que culminou na prisão do Presidente que acabou o segundo mandato com 87% de aprovação, na maior taxa do género da história do Brasil e do mundo. Eventual vencedor das presidenciais que elegeram a extrema-direita de Jair Bolsonaro, Luíz Inácio da Silva entrou candidato e líder de todas as sondagens na solitária de 15 metros quadrados da Polícia Federal de Curitiba. O mesmo tribunal que, nos últimos dias, perante a divulgação de parte das mensagens que comprometem a imparcialidade da Lava Jato, resolveu mantê-lo encarcerado, impediu-o de entrar na corrida. É o do “grande acordo nacio
nal”, “com o Supremo com tudo”, citado na gravação da conversa entre o senador Roberto Jucá do PMDB de Michel Temer e o empresário Sérgio Machado que, na tentativa de “estancar a sangria” das investigações de corrupção na Petrobrás que acabariam por lhe bater à porta, deu certezas à teoria de golpe que cresceu lado a lado com o processo de destituição de Dilma Rousseff. É o mesmo Supremo Tribunal de Luís Fux, homem de confiança de Sérgio Moro, segundo o desdobramento jornalístico que o The Intercept Brasil acrescentou à mega operação que continua a abalar as estruturas do país.

“Cultura do ódio”

Nem o prémio Camões está disposto a ver no que dá. Aos 75 anos, Chico Buarque pediu visto de longa duração para escrever em Paris, longe da iminente crise sistémica agravada pela divulgação das mensagens trocadas entre Moro e Deltan Dallagnol, procurador da Lava Jato. Em entrevista ao Le Monde, o compositor de vários hinos da resistência ao regime militar derrubado há 30 anos,
denuncia “a cultura do ódio” da era Bolsonaro mas recusa compará-la a 1969 quando se exilou, pela primeira vez, na Europa, “com perseguição concreta e direta aos artistas”. Nessa altura, Vinícius de Moraes ter-lhe-á dito “quando voltar, volte fazendo barulho”. Foi o rastilho do ‘Apesar de Você’ e do “Meu Caro Amigo” que alfinetava a censura nos correios. A julgar, pelas cartas enviadas por Lula da prisão que o cantor ajudou a ler há dias num teatro da capital francesa, continua a ser. Detido em abril de 2018, o ex-presidente anda de recurso em recurso a exigir liberdade. Condenado por corrupção, sem que a acusação tivesse conseguido demonstrar que é proprietário do triplex do Guarujá, alegadamente oferecido como suborno por uma construtora, deixou de pedir “provas” quando o apartamento foi dado como contrapartida pela empreiteira OAS noutro processo em que a empresa, condenada, abriu falência e transferiu a casa para outra construtora. Estávamos em 2017, entre a primeira condenação a nove anos proferida por Sérgio Moro e a revisão da pena para mais de 12 anos do colectivo do TRF-4.
Desde então, o metalúrgico entregou-se às autoridades determinado a provar a inocência no processo em que se diz alvo de uma condenação política. O terramoto com epicentro nas reportagens do jornalista Glenn Greenwald do The Intercept que mostram que Sérgio Moro coordenou e interferiu nas investigações, dando orientações explícitas e apontando caminhos aos procuradores são, na interpretação da brasileira e analista de política internacional, Aline Piva, a “evidência do caráter judicial das novas ditaduras que estão nascendo na América Latina”. Em conversa com A Voz do Operário, a professora universitária diz que a implicação imediata da investigação jornalística conhecida como Vaza Jato “é a confirmação de que estamos diante de um processo político e não de um caso judicial ou de combate à corrupção”.

Vaza Jato

Jair Bolsonaro não só condecorou Sérgio Moro, como celebrou nas redes sociais, a recente decisão do STF que adiou para depois das férias judiciais, em agosto, a apreciação do Habeas Corpus interposto ainda no ano passado, pela defesa de Lula que acusa o ministro da Justiça de ter orientado a Lava Jato em benefício próprio. No Brasil, “o que é da justiça, não é só da justiça”. O The Intercept mostra que o Ministério Público tentou impedir entrevistas de Lula “por medo que ajudasse a eleger Haddad”. Denuncia a confiança de Moro no juiz do STF, Luís Fux que haveria de proibir as ditas entrevistas, alegando que “a desinformação do eleitor compromete a escolha de mandatários de qualidade”. Ouvido no Senado, Moro convida o “site a apresentar tudo o que tem”. Não abandona o governo porque não vê irregularidades. “Moro ganhou a pasta como recompensa pelos “trabalhos prestados”, explica Aline. “O apoio popular de Moro, apesar de ter diminuído, está muito ligado à guerra mediática. Elevar a corrupção, encarnada em Lula e no PT, como o maior inimigo da nação, e colocar Moro como o bastião do combate a esse inimigo é uma narrativa consolidada”, continua a analista que não confia, para já, numa anulação da condenação do ex-presidente. “Seria reconhecer que o Judiciário manobrou de forma descarada para levar adiante uma agenda política contrária aos interesses dos brasileiros”, sublinha. Mesmo a ala militar saiu em defesa de Moro. Os oito ministros, mais do que em qualquer governo do regime militar, alinharam na propaganda do uso indevido das mensagens e, mantêm-se de pedra e cal. “Já ocupam espaços-chave dentro do governo, e podem ditar os rumos do país sem o custo político de escancarar que o país vive efetivamente sob o domínio de uma ditadura militar”, denuncia Aline Piva.

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