Internacional

Economia

A covidização do capitalismo

Dependendo da idade de quem leia esta crónica, poderemos lembrar-nos de uma, duas, três ou quatro grandes crises económicas mundiais. O capitalismo habituou-nos de tal maneira à sazonalidade da crise, que notícias sobre recessões, quebra dos preços do petróleo ou falências de bancos, que o pânico em Wall Street já dificilmente se repercute no nosso pânico. Aprendemos uns a viver de crise em crise e outros em perpétua crise, mas o desastre económico que aí vem, a reboque da COVID-19, difere significativamente das crises anteriores.

O capitalismo conhece três tipos de crises: as cíclicas, que de década em década exigem a destruição da produção excedentária para manter ou recuperar as taxas de lucro; as estruturais, nas quais a crise cíclica só pode ser ultrapassada com uma reorganização do modo de produção capitalista e, finalmente, as sistémicas, que põem em causa a sua própria existência. A crise de 2008, por exemplo, constitui um exemplo paradigmático de uma crise cíclica: após a destruição de milhares de bancos, empresas, fábricas e milhões de postos de trabalho, a economia de casino global reabriu portas com as mesmas regras de antes: nenhuma. Já a Grande Depressão de 1929 é um bom exemplo de uma crise estrutural: o capitalismo teve de reinventar as suas próprias regras para assegurar a subsistência histórica. Sem a profunda intervenção keynesiana do Estado sobre o modo de produção, a crise estrutural de 1929 teria evoluído para a crise do próprio sistema. A presente recessão económica marcada circunstancialmente pela pandemia, enquadra-se no modelo de uma crise estrutural. O capitalismo que aí vem, sendo igual a si próprio, será diferente daquele que conhecemos desde a década de 70.

Um estudo de Nir Jaimovich e Henry Siu chegou a uma conclusão misteriosa: a recuperação económica que se seguiu à crise de 2008 não correspondeu a uma recuperação de postos de trabalho. Um outro estudo, encomendado em 2016 pelos conselheiros económicos do então presidente dos EUA, Barack Obama, lançava alguma luz sobre o que se estava a passar: 83% de todos os empregos remunerados com menos de 20 dólares à hora corriam um alto risco de serem substituídos por “máquinas”. Tratava-se de um fenómeno global e histórico de desenvolvimento das forças produtivas. Na China, por exemplo, entre 2013 e 2017, mais de 13 milhões de postos de trabalho industriais foram permanentemente eliminados pelo avanço da robotização. Pretender deter este comboio seria o equivalente contemporâneo dos luditas que, no século XIX, destruíam as máquinas que roubavam o trabalho aos artesãos e minguavam o salário dos operários. Como então, o que se exige não é tentar travar a marcha da técnica e da ciência mas compreendê-la e colocá-la ao serviço do progresso comum.

O apelo da automação da produção é tão antigo como o capitalismo industrial mas, há pelo menos vinte anos, as potencialidades técnicas disponíveis para a robotização não se consumam. Concorre para esta travagem uma certa hesitação do capitalismo global em saltar para um mundo imprevisivelmente diferente do actual. O que fariam os milhares de milhões mais-que-desempregados e, conforme o augúrio de Yuval Harari, «inúteis»? Viveriam de esmolas sociais incondicionais? Revoltar-se-iam? Exigiriam a propriedade das máquinas que tudo geram? O que se chamaria, em termos marxistas, a esses «inúteis» cuja exploração já não é necessária ou a esse sistema em que a mais-valia já não é extraída do trabalho alheio?

Digitalização e automação

É possível que a actual pandemia seja o gatilho histórico para as grandes mu- danças que há décadas vinham sendo travadas. Um estudo da Universidade de Chicago concluiu que 42% de todos os lay-offs motivados pela pandemia da COVID-19 resultarão em perdas permanentes de postos de trabalho. É que uma fatia de leão destes lay-offs correspondem ao sector dos serviços que, hoje em dia, representam 70 por cento do Produto Mundial Bruto. A pandemia criou o ensejo ideal para a digitalização de parte substantiva desses serviços. Essa digitalização não terá volta atrás.

Por digitalização, não me refiro somente à substituição da actividade humana pela inteligência artificial dos algoritmos das apps, mas a toda a substituição do físico pelo digital, que vai do teletrabalho a uma compra online. O confinamento do mundo inteiro constituiu gigantesco ensaio sobre as possibilidades de digitalizar a vida: milhares de milhões de pessoas começaram, por exemplo, a fazer compras pela internet pela primeira vez e continuarão a fazê-lo quando a pandemia terminar. Experimentaram-se consultas médicas e aulas online e investiram-se fortunas fabulosas em apps que podem substituir os trabalhadores confinados.

Por outro lado, a recessão económica e a crise social exacerbadas pela pandemia aplicam um estímulo descendente sobre a contratação. A título de exemplo, os consumidores passam a optar por marcas mais baratas que, invariavelmente, são as que têm menos custos com mão-de-obra, quer seja porque exploram mais os trabalhadores quer seja porque se encontram num estádio de automação mais avançado.

A digitalização que aí vem é o corolário histórico da financeirização da economia pelo capital fictício e monopolista. A digitalização que aí vem abre a porta a níveis nunca antes vistos de automação porque cria as condições técnicas e políticas para o controlo social de milhões de «inúteis» finalmente afastados dos cada vez mais complexos e frágeis circuitos globais de mercadorias por onde se espalhou o coronavírus. Também para o capital produtivo, a automação se torna necessária. Peter Hasenkamp, ex-responsável pela cadeia de abastecimento da Tesla, queixava-se de que são precisas 2500 peças para produzir um automóvel quando basta apenas uma para não o produzir. Só um grau mais avançado de automação responde às vulnerabilidades expostas pela pandemia.

Se for conduzido pelos que hoje detêm o poder político, o processo de digitalização e automação em curso tornará o mundo mais desigual ainda. Se for conduzido pelos de sempre, servirá para melhor controlar e reprimir os que não têm poder, contribuirá para aprofundar a destruição dos recursos naturais do planeta e acelerar as mudanças climáticas que ameaçam a vida na terra.

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