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Da ilusão de democracia na América

Na nossa relação com os Estados Unidos da América (EUA) não somos meros espectadores. Todos os dias, as administrações e as grandes empresas norte-americanas tomam decisões, negoceiam ou agridem a nossa realidade, seja através da guerra, seja através da ingerência em assuntos internos dos Estados, seja através dos acordos comerciais internacionais e da concorrência cambial. Mas, como se forma a democracia na América?

Num momento em que tanto se fala nos media da escolha de um candidato pelo Partido Democrata, que derrote o candidato republicano e atual presidente Donald Trump, num processo complexo e confuso, talvez seja importante olhar para todo esse processo eleitoral desde a raiz até ao impacto no mundo inteiro.

Os EUA têm dois superpartidos que acolhem dezenas de outros micropartidos e diversas tendências. As eleições primárias são a ferramenta dos dois partidos para encontrar um candidato à presidência dentro desse caldo ideológico, não só através de escrutínio eleitoral, mas também do volume dos fundos angariados para a campanha. Estas eleições primárias são feitas em cada Estado, mas nunca se realizam ao mesmo tempo – vão-se realizando, de fevereiro a junho, culminando, no caso do Partido Democrata, numa Convenção onde se escolhe, então, o candidato do partido à Presidência dos EUA.

O modelo de votação naquelas eleições que antecedem a convenção decisiva pode ser o voto direto (primárias) e/ou o “caucus”. O “caucus” é um modelo que só se pratica em dois estados – Iowa e Nevada – e no qual, num ambiente controlado pelo próprio partido, com métodos e ferramentas criadas pelo próprio partido (ou por empresas), um conjunto de delegados nomeados para o efeito escolhe o seu candidato preferido. Esses delegados representam um conjunto de eleitores, pelo que apenas a percentagem de votos mais alta entre esses delegados é considerada para efeitos de determinação da vitória naquele Estado. Se um candidato tiver uma percentagem abaixo daquilo que é aceitável para a eleição, perde viabilidade e sai da corrida, encaminhando o apoio do seu eleitorado para uma outra candidatura. No dia da Convenção, para decidir o candidato final, os delegados podem mudar o sentido do seu voto. Ou seja, é uma eleição indireta, que nada tem que ver com o voto dos eleitores.

Ainda assim, os eleitores de base também votam nos candidatos. Porém, esse “voto popular” nas primárias e nos “caucus” democratas é meramente estatístico e foi tornado público, pela primeira vez este ano, apenas para destacar mediaticamente aquilo a que os comentadores americanos chamam de “momentum” e que foi interpretado por muitos comentadores portugueses como um sinónimo de vitória. Este erro de análise impede-nos de detetar aqui o maior problema da democracia americana: é que ela não é uma democracia, é um concurso viciado.

Mas mais do que os votos, o dinheiro que as campanhas angariam define o essencial do seu sucesso. Até agora, foram angariados mil milhões e meio de dólares, para ambos os partidos. E esse dinheiro pode vir de várias fontes: desde uma pequena doação de um eleitor ao financiamento elevado, obscuro, dos interesses corporativos. No Partido Democrata, o candidato que mais dinheiro investiu na sua própria campanha foi Michael Bloomberg, que é também o dono da cadeia de comunicação social Bloomberg e que antes de estar inscrito como democrata, até 2018, esteve inscrito como republicano. O multimilionário, autofinanciado, doou a si mesmo mais de 400 milhões de dólares, bastando-lhe um financiamento que viabilize a sua candidatura, sem ter de se submeter aos “caucus”. Segundo as regras do próprio partido democrata (a Constituição não define o método eleitoral dos partidos), os candidatos não têm de participar nas eleições de todos os Estados. Ainda assim é-lhes permitido estarem na corrida.

Já Bernie Sanders, aquele que estatisticamente tem mais aceitação popular, conseguiu angariar perto de 132 milhões de dólares, mas para além do dinheiro de Bloomberg, ainda conta com o maior adversário de todos: a comunicação social americana, que está em pânico com a aparente política socialista do senador do Estado do Vermont. O mesmo Bernie Sanders que, em 2016, perdeu para Hilary Clinton na Convenção Democrata por causa do voto dos delegados e não do voto popular. Mas agora, o sistema que apoiou Clinton parece ter-se diluído em várias candidaturas dentro daquele partido.

Um país cujo sistema eleitoral depende da discricionariedade de delegados, que tem no voto popular uma função meramente estatística e assegura como critério de candidatura o volume do financiamento, não é uma democracia. Que legitimidade tem, então, este país para exigir comportamentos democráticos a outros? Só a romantização de uma América à medida da cultura com que a própria nos colonizou é capaz de nos alienar de uma inegável pergunta: é isto a democracia?

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