A partir dos meios de comunicação e das tribunas políticas hegemónicas assistimos, nestas semanas, ao desenvolvimento de um discurso constante e comum em relação à denúncia de uma suposta invasão russa da Ucrânia.
Carmen Parejo, diretora da revista La Comuna
Todos os discursos correspondem a um propósito. Podemos dizer que procuram claramente intervir tanto na opinião pública como na atuação dos interlocutores interpelados. Para compreendermos a intenção e a finalidade do relato sobre a suposta invasão russa da Ucrânia é fundamental aproximarmo-nos do contexto e dos interesses em conflito entre os implicados neste caso.
Perante a acusação por parte, fundamentalmente, das potências da NATO – e em especial dos Estados Unidos, da iminente invasão russa da Ucrânia, a resposta da parte russa tem sido a negação constante. De tal forma que o próprio presidente ucraniano Volodimir Zelenski negava estes dias que se estivesse a produzir uma atividade militar extraordinária por parte da Rússia, acusando os Estados Unidos de gerar pânico e estar a causar terríveis danos económicos a um país que já enfrenta uma terrível crise. A exigência de Zelenski persiste, contudo, há outra questão: Poderá a Ucrânia entrar na NATO?
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), em cuja criação Portugal participou como membro-fundador durante o regime fascista, é uma aliança militar intergovernamental que surgiu em 1949. O pretexto dos promotores da NATO era nem mais nem menos do que uma suposta “invasão soviética” no continente europeu. O certo é que nessa época o movimento operário e comunista tinha força e estava no seu auge na região. Por outras palavras, a NATO não nasceu para combater nenhuma invasão estrangeira mas antes pelo medo a um confronto dentro dos seus próprios países. O seu temor era a mudança no equilíbrio de forças da luta de classes dentro das potências capitalistas que estavam por trás do acordo. Apesar de se justificar a NATO com o contexto da Guerra Fria não seria até à desintegração da URSS que as forças da aliança atlântica atuariam pela primeira vez como força conjunta na Jugoslávia.
A dissolução da URSS supôs a destruição social, económica e política das repúblicas que a compunham. A corrupção e as máfias tomaram o poder sob o patrocínio das potências europeias e dos Estados Unidos. Isto favoreceu a instabilidade dessa respúblicas e, simultaneamente, o expansionismo da NATO como da própria União Europeia, sem que fosse necessária qualquer justificação. Se observamos o mapa, vemos claramente como se desenvolveu essa expansão fora do seu âmbito de influência original.
A Federação Russa ultrapassou a sua própria etapa sombria que se seguiu à desintegração. Com a chegada de Vladimir Putin ao poder não se solucionaram todos os problemas dessa etapa. Contudo, produziram-se mudanças que devem ser entendidas a partir do realismo político e não tanto como um voluntarismo abstrato da nova política russa. A recuperação de setores estratégicos da economia e a viragem progressiva nas suas políticas internacionais foram duas peças chave desta nova etapa.
O mundo unipolar liderado pelos Estados Unidos, também como potência hegemónica da NATO, alcançou o seu zenit com a invasão ilegal do Iraque em 2003. Não obstante, depois daquela agressão a unipolaridade norte-americana começa a etapa de declive. Devido ao auge de novas potências económicas emergentes, onde se destacam a Rússia e a China, o ressurgimento de eixos de resistência ao avanço unipolar de caráter regional na América Latina e Ásia Ocidental.
Chegamos assim ao ano 2014 na Ucrânia com um novo golpe de Estado que não era inédito entre as distintas fações da oligarquia ucraniana mas, desta vez, havia algo mais de fundo. O apoio claro e direto da União Europeia aos golpistas reforçou-se com a chegada do apoio norte-americano. De facto, como na Jugoslávia ou no Afeganistão, vimos estas potências intervir de forma direta e clara nos assuntos internos de outros Estados soberanos com absoluta naturalidade.
Em Kiev, o novo governo golpista serviu-se de grupos de choque de caráter neonazi vinculados com a figura do colaboracionista nazi ucraniano Stepan Bandera. Isto conduziu ao aumento da violência e da perseguição direta tanto de russos étnicos ou culturais como de ciganos, judeus ou militantes de esquerda. Destaca-se o massacre em Odessa onde 47 pessoas foram queimadas vivas na sede dos sindicatos.
Entre as consequências diretas destes factos temos por um lado o referendo da independência, e posterior adesão à Federação Russa, da península da Crimeia e, em segundo lugar, o surgimento da resistência na região em Donbass, zonas de maioria russa.
Foram várias as tentativas diplomáticas para solucionar o conflito entre Kiev e as repúblicas populares nascidas na guerra de Dobass, as Repúblicas de Donetsk e Lugansk. O incumprimento sistemático pela parte ucraniana dos acordos de Minsk e o apoio permanente da NATO às forças ucranianas deixaram estas repúblicas com poucas opções para a sua sobrevivência para além de continuar com a resistência.
Os Estados Unidos, pelo seu lado, insistem numa suposta iminente invasão que até os seus sócios de Kiev negam, enquanto rejeitam a proposta de se comprometerem por escrito a deixar de acossar as fronteiras russas. Muito provavelmente a intenção dos Estados Unidos não é mais do que repetir o esquema da Ossétia do Sul: forçar a Rússia a proteger o Donbass e consolidar a suposta invasão como profecia auto-cumprida.
O presidente ucraniano tem a urgência de sair das suas próprias contradições. Manter como sócios supremacistas nazis e os Estados Unidos não parece compatível com responder ao reto da terrível crise económica e política depois de oito anos de guerra em Donbass. Saberá Zelenski que a Ucrânia é vista como um simples peão da NATO contra a Rússia?