Internacional

Argentina

Milei sem véu nem aura

Javier Milei assumiu a presidência da Argentina após uma chocante vitória na segunda volta das eleições contra Sérgio Massa, no final do ano passado.

O projecto de Milei fascista é o do grande capital transnacional

O choque não se deve tanto à derrota do candidato apoiado por uma frente democrática, que juntou um amplo espectro político mas não conseguiu iludir as responsabilidades do governo de Alberto Fernández (2019-2023), e do próprio Sérgio Massa, seu ministro da Economia, na situação desgraçada em que se encontra o povo. Aspirações e necessidades populares continuaram a ser sacrificadas no altar da dívida ao FMI.

O inesperado prende-se com o facto de uma personagem muito para lá de excêntrica (nas declarações e propósitos, de uma violência incendiária antes e durante a campanha, defensor de propostas grotescas como a normalização do tráfico de órgãos humanos), ter levado, no derradeiro sufrágio, 14,5 milhões de argentinos (quase 56% dos votantes) a caucionarem um projecto abertamente reaccionário.

Nos últimos anos, acumulou horas de antena na doutrinação para o conservadorismo ultramontano, o «anarcocapitalismo» como mantra económico, para uma retórica «antissistema» e contra a «classe política», corrupta e incapaz.

Todavia, a surpresa torna-se menor se considerarmos que Javier Milei foi, de longe, o mais requisitado orador nos meios de comunicação de massas. Nos últimos anos, acumulou horas de antena na doutrinação para o conservadorismo ultramontano, o «anarcocapitalismo» como mantra económico, para uma retórica «antissistema» e contra a «classe política», corrupta e incapaz. Os donos do sistema promoveram alguém que capitaliza o descrédito da direita anquilosada e da social-democracia tropical, a frustração e a revolta de parte significativa dos trabalhadores e das camadas mais desfavorecidas face às miseráveis condições de sobrevivência que o capitalismo lhes oferece. Pretenderam e conseguiram acicatar o desprezo e instrumentalizar os sentimentos mais primários dos explorados perante alegadas ameaças, sejam os migrantes, sejam todos os povos e países que não completamente subjugados aos EUA e Israel, que Javier Milei, e quem nele manda, sacralizam.

O actual presidente argentino nunca escondeu a intenção de reduzir o Estado burguês às suas componentes repressivas: segurança interna, justiça e forças armadas.

O projecto de Milei, fascista, é o do grande capital transnacional. O actual presidente argentino nunca escondeu a intenção de reduzir o Estado burguês às suas componentes repressivas: segurança interna, justiça e forças armadas. Tudo o resto, de empresas e serviços públicos e funções sociais, a recursos naturais, de territórios e áreas soberanas, a direitos, liberdades e políticas sociais, é para privatizar ou liquidar. Nem o Banco Central, dispensável, entre outras razões, diante da intenção de adoptar o dólar como moeda nacional, escapa à fúria vende-pátrias. Trata-se da repetição da «receita» dos Chicago Boys, imposta no Chile através da feroz e sanguinária ditadura que sucedeu ao derrube do governo de Salvador Allende, em 1973.

O grande capital tem, porém, de enfrentar a resistência dos povos à «terapia de choque» neoliberal. Desde que Javier Milei assumiu o governo da Argentina, milhões de trabalhadores e outros sectores democráticos e progressistas saíram à rua em protestos, greves e manifestações, mostrando que a demagogia e a manipulação não canibalizam tudo e todos, por muito poderosos que sejam os meios que as veiculam. As movimentações de massas, a contestação às medidas anunciadas por Javier Milei, confirmam que não há outro caminho para travar o populismo, a nova roupagem para servir os monopólios, se não o da luta, da unidade, da consciencialização dos explorados para a verdadeira alternativa. Uma alternativa capaz de concretizar respostas aos seus legítimos descontentamentos, que se identifique e corresponda aos seus interesses de classe, que sacuda as ilusões semeadas pelos que defraudam as aspirações da imensa maioria em favor da obscena acumulação de riqueza por parte de uma elite.

Um amigo que recordo com saudade gracejava que os fantasmas deixam de o ser quando lhes tiramos o lençol da cabeça. Javier Milei está a perder as ruas, mesmo ameaçando com a mais brutal repressão e a supressão de liberdades elementares num estado de direito. Os seus pacotes legislativos enfrentam obstáculos institucionais. No parlamento, bicameral, só tem a maioria dos deputados e dos senadores se capturar os eleitos da direita tradicional. O presidente da Argentina tampouco consegue disfarçar que o seu governo é um retalho de executantes vinculados à «classe política», contra a qual vociferou, desbaratando a fama de justiceiro. O fantasma começa a ganhar figura de carne e osso à medida que se lhe vai tirando o lençol da cabeça. Essa é uma lição que transcende fronteiras, útil a todos os povos que enfrentem «bichos-papões» com favores mediáticos, bons auspícios eleitorais, véu e aura.

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