Sociedade

Habitação

População organizada, habitação conquistada

11 de Março. Estamos reunidos e discutimos a mobilização e divulgação da Manifestação de 28 de Março pelo Direito à Habitação. Estamos em diferentes frequências – os que apregoam a aproximação de medidas restritivas e o inevitável cancelamento da manifestação e os cépticos que foram ensinados a duvidar de notícias alarmistas. Decidimos nada decidir, afinal apenas ainda vemos fumo. Os dias seguintes iriam contrariar, a grande velocidade, os mais esperançosos e erodir os planos desta manifestação urgente.

13 de Março. No dia anterior, o Primeiro-Ministro decreta a suspensão da escola, confirmando que a pandemia também vai passar por aqui. São 8h e chegamos ao Bairro Alfredo Bensaúde – Olivais onde nos confrontamos com o aparato policial. Os despejos há semanas que se sucedem. São despejadas famílias de casas de habitação pública. Famílias que, continuamente confrontadas com a ausência de critérios para atribuição de casa, optam por ocupar casas vazias para não dormirem na rua. A lembrança dos tempos do fascismo não permite despejos durante a noite, mas permite que, após o prenúncio de confinamento se despeje famílias que não terão alternativa a viver em carrinhas ou em tendas. Num dia apregoam a distância física e ensinam-nos a lavar as mãos, no dia seguinte mobilizam polícia de choque para colocar pessoas na rua, sem acesso se quer a água potável. Nos dias seguintes concretizaram-se as suspensões dos despejos. Porém, só a 16 de Abril foi garantido um tecto para estas pessoas. Uma alternativa temporária, ficando por esclarecer para onde irão viver estas famílias após o confinamento, uma vez que a polícia de choque, para além de garantir a intimidação de activistas e moradores, também assegurou que as casas ficavam destruídas para evitar futuras ocupações.

21 de Abril. Surge mais de uma centena de casos po- sitivos com COVID-19 numa “pensão” na Morais Soares que “acolhe” migrantes e requerentes de asilo. A cronologia podia ser mais extensa. Podia incluir outros pontos do país. Podia incluir a situação dos sem-abrigo que até os balneários públicos viram fechados. O que se passa no Bairro da Torre, não assim tão longe de Lisboa, onde não há electricidade? O que se passa nos bairros dos subúrbios, como na Cova da Moura, onde como já é hábito a população parece ter sido esquecida? O que se passa nos acampamentos de ciganos sem água potável um pouco por todo o país?

A cronologia podia ser mais extensa. Podia incluir as notícias e o desagrado dos proprietários de alojamento local confrontados com o fim da sua galinha dos ovos de ouro. Podia até incluir a sua desfaçatez em exigir apoios ao Estado para manter estas suas casas remodeladas vazias. Mas o que precisamos, colectivamente, é de informação que nos sirva, que nos dê força para lutar e esperar que as leis do mercado, que estes senhorios tanto gostam, os empurrem contragosto para arrendamentos de longa duração e com rendas acessíveis.

A nível mundial, as soluções para habitação (sem-abrigo, despejos, arrendamento, crédito à habitação, habitação pública) têm sido diversas. Em Portugal, apesar dos sinais positivos – fim dos despejos, medidas de protecção dos inquilinos perante término do contrato de arrendamento e incentivo à negociação da renda – são bastante insuficientes. Embora se tenham anunciado investimentos em habitação pública, no geral, não se fazem transformações de fundo e apenas se tomam medidas paliativas. Ou seja, famílias que já tinham grande dificuldade em pagar a sua renda terão, nos 12 meses subsequentes ao fim da pandemia, um acréscimo mensal: restituição, em prestações, das rendas “suspensas” durante o confinamento.

A pandemia veio colocar-nos novos desafios, mas veio, sobretudo, colocar a nu as fragilidades do sistema, as suas contrariedades e a urgência de nos organizarmos. O meu apelo é que, para além de olharmos para os exemplos políticos noutros países, possamos olhar para a nossa história. Possamos olhar para a nossa Constituição e para o artigo 65o e interiorizar, de uma vez por todas, que “…todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto que preserva a intimidade pessoal e a privacidade familiar …”. Depois podemos recuar um pouco mais atrás e retomar as comissões de moradores e de bairros que pediram “Casas sim, Barracas não!”, o processo SAAL por todo o país e lembrar-nos que “População organizada, habitação conquistada!”

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