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Calor, uma questão de classe

O mês de julho de 2023 foi o mais quente alguma vez registado no planeta terra, depois de junho também ter batido recordes de calor – segundo o serviço europeu Copernicus. Apesar de Portugal ter escapado a algumas ondas de calor do início do verão que atingiram quase toda a Europa, provocando graves danos e inúmeras mortes, estamos cada vez mais expostos aos efeitos das alterações climáticas.

Para termos uma ideia, as vagas de calor que varreram a Europa no Verão de 2022 podem ter provocado mais de 61 mil mortes – de acordo com os números de uma análise epidemiológica publicada na Nature Medicine. Tudo indica que este ano o cenário será bastante pior.

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, até final do século pode assistir-se a um aumento de 100 mil óbitos prematuros por ano na Europa associado ao calor, se as temperaturas médias globais subirem mais de 2ºC face às da era pré-industrial. Sendo a população mais vulnerável os idosos, as pessoas com doenças crónicas, as grávidas, as crianças, e as pessoas mais precarizadas expostas a trabalhos exteriores.

2401 mortes provocadas pelo calor em Portugal 

No ano de 2022 foram registadas três ondas de calor entre 4 de julho e 7 de agosto, tendo causado a morte a 2401 pessoas em Portugal – ou seja, o 4º país da europa com maior taxa de mortalidade. Lisboa foi uma das 7 cidades europeias com mais alto índice de exposição a elevadas temperaturas, juntamente com Madrid, Roma, Nápoles, Barcelona, Nice e Marselha.

Segundo um estudo feito para a Área Metropolitana de Lisboa, o stress por calor pode vir a prolongar-se por 10 a 51 dias em meados deste século e atingir três meses seguidos (91 dias seguidos) no período 2071-2100, com base no cenário mais grave de aquecimento global (RCP8.5)”.

Três milhões de portugueses vivem em situação de pobreza energética 

Segundo números do Ministério do Ambiente e da Acção Climática, cerca de 660 a 680 mil portugueses vivem situações de pobreza energética dramática, e “entre 1,1 a 2,3 milhões de pessoas [vivem] em situação de pobreza energética moderada”. Ou seja, entre 1,8 milhões a três milhões de portugueses não conseguem manter uma temperatura adequada nas suas casas (tanto no verão quanto no inverno). Se o critério for o do peso da fatura de energia acima dos 10% dos rendimentos, então falamos de um universo de 3 milhões de pessoas em situação de pobreza energética em Portugal. 

Pouco se sabe sobre os efeitos da pobreza energética ligada ao calor em Portugal. Os únicos dados são-nos fornecidos pelo In-hale – projeto piloto de monitorização do calor dentro da casa de população idosa em Lisboa. Segundo este programa, Portugal é o segundo pior país da UE em termos de capacidade de as pessoas arrefecerem as suas casas – 38% dos portugueses vivem em casas que não são confortavelmente frescas e 98% não têm ar condicionado.

Calor, um indicador de classe

O calor é um claro indicador de pobreza. Uma família da classe trabalhadora que mora num apartamento pequeno, mal isolado, com poucas áreas verdes e com menos condições económicas para manter ventoinhas – não tem as mesmas condições para se proteger das altas temperaturas da mesma forma que quem tenha uma casa climatizada com jardim. 

Em Madrid, por exemplo, tem-se estudado o fator classe na maneira como cada um sofre com o calor. Segundo uma investigação da Universidade Politécnica de Madrid (UPM) sobre o impacto do calor nos bairros da capital do Estado Espanhol, descobriu-se que as diferenças de temperatura entre as zonas mais humildes (como Puente de Vallecas, Usera ou Carabanchel) e as mais ricas podem chegar a ultrapassar os 8ºC. Isto deve-se a factores como: a ausência de áreas verdes, a qualidade das edificações, a existência de trânsito e o poder de compra.

O urbanismo hostil 

A população de Madrid está cada vez mais preocupada com o sucessivo abate de árvores e o crescimento do chamado urbanismo hostil – conjunto de técnicas que tenta impossibilitar a vida nas ruas, que substitui espaços públicos por espaços comerciais ou “pseudo públicos” e incentiva a divisão social através da arquitectura. Esta política é seguida pelo atual executivo conservador desta cidade – cuja recente reforma de algumas praças deram origem à substituição da vegetação por cimento e betão.

Isto faz com que em certas partes da cidade se criem ilhas térmicas onde o calor é insuportável. Há zonas da capital espanhola que não baixam dos 30°C, e onde é quase impossível refrescar-se sem ter de entrar num sítio de consumo. 

Os parques e jardins – sítios onde ainda é possível fugir das temperaturas mais altas – têm vindo a fechar na hora do calor. Ao mesmo tempo, proibiu-se a celebração de aniversários em parques da cidade e as forças de segurança atuam contra o ócio ao ar-livre. Esta medida acaba por empurrar a classe trabalhadora para sítios climatizados de consumo. Quem não tem dinheiro, não consegue fugir ao calor.

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