Como em Girafas, esta peça coloca no centro uma família à margem, de um subúrbio. Um estranho atravessa o seu quotidiano, e, sem perceber, desenterra feridas e frustrações.
Um bairro, a lavandaria e a casa contígua da família da Sara (Íris Runa). O estranho (Vicente Wallenstein) precipita-se para a noite solitária desta jovem que se desloca de cadeira de rodas. David vem ofegante e traz uma camisa ensanguentada, que precisa de ser lavada. Sara resiste, depois tem uma ideia: se ele dançar, ela aceda ao seu pedido. Ele dança para a rapariga que não consegue andar.
Estamos focados no segmento direito do palco, entre roupas penduradas e essa máquina de lavar que agora lava o que parecia sangue. Acende-se ainda um néon que anuncia o horário as doze horas de funcionamento daquele negócio familiar. Sara fala-lhe do irmão que desapareceu com oito anos, depois de os pais terem ganho a lotaria (também em Girafas uma personagem ganha a lotaria, e, com o prémio, viaja para Paris, deixando uma máquina de lavar à dona de casa).
Sara vai buscar um copo de água ao rapaz, que aproveita para esconder alguma coisa. David está bem vestido, Sara percebe que ele não pertence àquela zona da cidade. As perguntas sucedem-se: quem é, o que lhe aconteceu naquela noite?
O enigma do enredo permite a Pau Miró o aprofundamento da relação entre as personagens: as falhas, o sofrimento, os medos e o mal vêm ao de cima, à medida que a história do rapaz se torna mais confusa.
O pai de Sara (Pedro Carraca), simpático, oferece comida a David, que tenta responder às perguntas. Foi passear com o cão, o cão entrou numa luta e ficou ferido. Também o dono da lavandaria percebe que ele não pertence ao bairro. Ali, todos se conhecem a vida e ao passado uns dos outros. Sabem, por exemplo, do trauma do inspector da polícia, a quem a mãe humilhou entornando cerveja na cabeça.
É também pela lateral direita, junto à plateia, que entra a mãe (Andreia Bento), cambaleante, vinda do Bingo, para onde foi apostar a sorte e beber gin tónico. Estranha a presença de David. Fala-lhe da desgraça da morte do filho.
O luto da família e a ambição do inspector
Saímos da lavandaria, passou a noite. Na lateral esquerda do palco, na cozinha, a família, que já inclui David, tomam o pequeno-almoço. Há o doce de ameixa que a mãe fez, a recusa desta em servir café ao pai. Por trás do mal-estar, prossegue a curiosidade sobre o rapaz: David vive com os pais na zona alta da cidade, os pais vendem piscina e arrendam apartamentos.
A mãe fica violenta quando falam da sorte na lotaria que se converteu em tragédia. O pai refugia-se nas traseiras da lavandaria, onde toma conta da manutenção das máquinas. Sara não consegue andar. A quase certa morte do filho que desapareceu há dez anos deixou marcas irreparáveis. Para aquele trio, o único ponto de apoio (e fonte de rendimento) é a lavandaria.
David quer partir, mas a camisa lavada que lhe dão não é a sua. Ele conhece a camisa que levou do pai. O pai não acreditou que ele aparecesse sem uma nódoa. David não pode sair sem a camisa.
Aparece é o inspector (Pedro Caeiro), com uma mala, cansado do turno da noite e de um crime por resolver. Não parar de falar, estranha a presença daquele forasteiro. Todos ficam do lado de David, já perceberam que alguma coisa aconteceu naquela noite ao jovem. É o namorado de Sara, dizem. Sara parece aliviada com esta mentira. David, tenso e mais preocupado em resolver a embrulhada em que se meteu.
A mala do inspector está vazia, esqueceu-se das coisas do ginásio. Senta-se, conta os pormenores do homicídio que aconteceu numa esquina a metros dali. Escuta a história do cão de David, e as suas suspeitas sobre ele aumentam. Antes de sair, descobre a faca que David escondeu. Recomeça o interrogatório. O inspector é desconfiado e tem uma fantasia: deixar tudo para trás, com uma mala cheia de notas. Já sabe das origens algo abastadas do rapaz. O pai começa por tentar apaziguá-lo, mas cede à violência e à essa ilusão da mala com dinheiro.
O inspector partilha a insatisfação e a frustração daquelas vidas paradas, que se escondem atrás do materialismo.
David e Sara: esperança e desilusão
David é o foco da peça: é quem mais arrisca viver num mundo assustador. Ao fim de um ano fechado no quarto, saiu para passear o cão, foi também ao cinema… Mas a solidão era imensa. Acabou na esquina, à procura da droga que podia colmatar o vazio. O traficante estava morto, conta.
Agora que amanheceu, tem de voltar com a camisa lavada para casa. Sara esconde que David era a sua esperança. Aquele estranho lembrava-lhe o irmão, e muito mais do que isso. David podia ser a vida fora do ciclo fechado do bairro, da casa-lavandaria. Por isso, quando o rapaz parte, tenta ir atrás dele. A vontade e o desejo de sair são derrotados pela fraqueza das pernas.
Leões é um texto duro e circular sobre um quotidiano focado nas dores destes personagens que parecem sem saída. Ficamos em silêncio, a a reflectir sobre os buracos negros e as esquinas escuras das noites das nossas próprias existências ensimesmadas.
Os Artistas Unidos completam em Setembro a tríade de Pau Miró, levando a cena Búfalos. Para, depois, reporem estas três importantes peças contemporâneas sobre personagens oprimidas nas suas mágoas interiores – incapazes de lutar por aquilo que ainda as faz sonhar.