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Literatura

Os Lusíadas – Antologia, temática e texto crítico, de António Borges Coelho, com ilustrações de Manuel San Payo

António Borges Coelho faz, neste livro, uma leitura nova e actuante de Os Lusíadas, investindo e sobrelevando as estrofes socialmente comprometidas da nossa obra maior e universal. É o Camões humano, defensor do povo miúdo, que tinha esperança que o país inquisidor, beato e miserável mudasse e com ele as vontades, Tomando sempre novas qualidades.

António Borges Coelho (1928/2025), nasceu em Murça, Trás-os-Montes: Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa, dedicou-se, durante grande parte da sua vida, longa e profícua, ao estudo e divulgação da nossa história e dos seus períodos mais graves, mas também de júbilo e mudanças de paradigma, em títulos como Portugal nas Espanha Árabe, Questionar a História – Ensaios sobre a História de Portugal, Inquisição de Évora, A Revolução de 1383, e tantos outros. Figura maior da nossa cultura, Borges Coelho foi agraciado com a Ordem de Santiago e com a Ordem da Liberdade, a sua vasta bibliografia inclui, para além de estudos académicos sobre a História de Portugal, poesia, teatro, ensaio e ficção.

Incluído nas comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões, as edições Avante!, publicaram no ano em curso, uma nova edição, com ilustrações de Manuel Sampayo, do livro «Os Lusíadas» – Antologia temática e texto crítico, que hoje aqui registamos como simbólica homenagem ao grande pedagogo, resistente antifascista e escritor, que foi António Borges Coelho

O Camões de Borges Coelho é um Camões poeta e próximo do povo, que brigava contra nobres e burgueses ao lado da plebe, que sofreu injúrias, fome e prisões, que denunciou honrarias e faustos da corte enquanto o povo mourejava de sol a sol por uma côdea dura, ou se esforçava nas naus da Índia morrendo de febres, de peste e de escorbuto, submetido e explorado, esse ilustre peito lusitano, que percorre os 10 cantos de Os Lusíadas e que António Borges Coelho, com a vera sabedoria crítica do historiador, neste livro encena como questão central: Que importância têm afinal Camões e Os Lusíadas; para que serve a poesia? A resposta de Borges Coelho é imediata e plena de contundência: Para tornar mais forte a nossa “fraca humanidade”.

Que “fraca humanidade”, como povo, teríamos, que memória colectiva nos fixaria a este chão solar e madrasto, que identidade, que língua falaríamos sem os poetas que cantaram e cantam a nossa rebeldia, os gesto meritórios mais fecundos e justos, as andanças pelo mundo em busca de pão e de cuidados; as pelejas pelas rotas transoceânicas, orientes, oceânicas, áfricas, granjeando escassa fortuna e muito sangue derramado; as lutas pela independência desde a fundação até 1383, que Fernão Lopes descreveu na Crónica de D. João I, modelar escultor da primeva língua, passando pelo lirismo arrebatado de Bernardim Ribeiro, pelas alucinadas viagens de Fernão Mendes Pinto; pelo supra-Camões que Pessoa quis ser, pela denúncia da barbárie fascista que se inscreve na pena corajosa dos nossos poeta neorrealistas, de Manuel da Fonseca a Carlos de Oliveira, de Joaquim Namorado a Armindo Rodrigues e ao próprio Borges Coelho; o 25 de Abril de Ary dos Santos, de Manuel Gusmão, de Sophia, de Jorge de Sena.

António Borges Coelho dá-nos a resposta nesta abordagem criteriosa e no diálogo que ao longo do ensaio estabelece com as mais impressivas passagens da épica camoniana, a começar nesse longo e modelar poema, que nos interroga: «Quem pode ser no mundo tão quieto», construído em oitavas, inscrevendo no poema a feição de modernidade discursiva, a agudeza singular, as virtualidades do idioma, na forma como Camões o utiliza para denunciar o alheamento das classes dominantes perante o desconcerto do mundo: Quem pode ser no mundo tão quieto,/ou quem terá tão livre o pensamento,/quem tão experimentado e tão discreto,/tão fora, enfim, de humano entendimento/que, ou com público efeito, ou com secreto,/lhe não revolva e espante o sentimento,/deixando-lhe o juízo quase incerto,/ver e notar do mundo o desconcerto?

António Borges Coelho faz, neste livro, uma leitura nova e actuante de Os Lusíadas, investindo e sobrelevando as estrofes socialmente comprometidas da nossa obra maior e universal. É o Camões humano, defensor do povo miúdo, que tinha esperança que o país inquisidor, beato e miserável mudasse e com ele as vontades, Tomando sempre novas qualidades. Um país de todos e possível, que não apenas de um punhado de nobres brutos e desumanos, senhores de latifúndios feudais, vivendo de prebendas da Corte e da exploração escrava, à tripa forra, submetendo sem cuidados o povo miúdo à sua ambição de poder, à ganância e à vã cobiça.

Camões, mesmo acossado pela Inquisição, sobrelevando os seus métodos com subtil engenho e arte, não deixou de criticar, embora de forma velada, alguns dos que privavam na Corte de D. Sebastião: Vê que esses que frequentam os reais/Paços, por verdadeira e sã doutrina/Vendem adulação, que mal consente/Mondar-se o novo trigo florescente, e não deixou também, nesse incómodo Canto IX, que muito boa gente ainda olha de soslaio, de denunciar, nas estrofes 27 e 28, a relação cínica entre nobreza e povo, pendendo as leis sempre para o Rei, deixando o povo à míngua e à mercê de todos os ultrajes: Vê que aqueles que devem à pobreza/Amor divino, e ao povo caridade,/Amam somente mandos e riqueza,/Simulando justiça e integridade;/Da feia tirania e de aspereza/Fazem direito e vã severidade;/Leis em favor do Rei se estabelecem,/As em favor do povo só perecem.

No Texto Crítico, que acompanha cada período em análise de Os Lusíadas, escreve António Borges Coelho: «O verso camoniano louva e fustiga. Louva a coragem, os chefes que preveem os perigos, os expertos peitos, os que sobem ao mando quase forçados. E fustiga: reis, nobres ineptos, filhos-família, padres ambiciosos e tirânicos.»

Tal como Camões, também Borges Coelho cedo se rebelou contra a perfídia, a miséria e ignorância decretada, que era forma intrínseca do fascismo luso. Essa oposição valeu-lhe várias prisões nos curros da PIDE: Aljube, Caxias, Rua do Heroísmo (Porto) e Peniche. Nesta última, Borges Coelho casaria com Isabel Coelho, aí escreveu dois hinos de revolta contra a repressão, que cantores como Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, espalhariam pelo País: Paisagem Sou Barco. No pátio de entrada do actual Museu Resistência e Liberdade, em Peniche, podemos ler, junto a um monumento que representa a Liberdade conquistada em Abril, uma frase sua: “Disseram não… para que a água da vida corresse limpa.”

Que falta ainda nos faz este vigor, esta superior forma de afirmação da língua e da justiça, a clareza e a coragem do verbo de Camões. Para os que questionam a importância de ler hoje Os Lusíadas, a interpretação crítica que dele nos dá António Borges Coelho é adequada resposta, lúcida e actuante.

António Borges Coelho – Os Lusíadas – Antologia

Temática e Texto Crítico – Edições Avante!

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