São muitos e diversos os temas das conversas dos velhos que se reúnem no Jardim do meu bairro. Quase todos eles vêm do passado. Como muito bem se entende.

Por vezes o diálogo é uma espécie de sabatina entre os dialogantes – sabem porque é que este sítio se chama o Areeiro? Pois eu ainda me lembro dos areeiros que havia aqui perto e da forma como extraía areia com que construíram muitos prédios por essa Lisboa fora. Um homem punha-se em cima da barreira arenosa com uma comprida vara e cá em baixo um outro homem, de picareta em punho, ia cavando uma pequena gruta que o lá de cima com a sua vara ia desfazendo. Trabalho perigoso porque muitas vezes o de lá de cima vinha parar cá em baixo quando a areia sob os seus pés se desboroava, e o cá de baixo era subterrado pela areia que o lá de cima fazia despender com a sua vara. 

Depois de um breve silêncio houve um outro velho que assumiu o protagonismo dizendo: … eu, disso não me lembro, mas lembro-me do “comboio de Chelas” que por ser vagaroso se associava à preguiça (“pareces o comboio de Chelas…”). Sabem porquê? Não? Pois digo-vos eu, porque de comboios sei eu. Trabalhei com eles quase toda a minha vida.

Acreditem ou não, o troço de caminho de ferro mais inclinado do país é o que vai do apeadeiro do Braço de Prata, quase à beira-rio, para depois subir por aí acima, vencer em ponte o vale de Chelas, passar por baixo do viaduto da Avenida de Roma e por cima da avenida da República até ao cocuruto de Entrecampos e depois descrer até Campolide e por aí fora até Alcântara-Mar, novamente à beira-rio. Isto e mais o túnel do Rossio constitui uma notável obra de engenharia. Garanto-vos eu… bem me lembro do esforço que as locomotivas faziam, para arrancar no piadeiro do Areeiro, com as rodas a patinar nos carris e o comboio sem andar. Uma chiadeira dos demónios…

Disso também não me lembro, sou um pouco mais novo, disse outro conversante, mas lembro-me muito bem, tenho ainda nos olhos e nos ouvidos, a animação que foi aqui no bairro o 1º de Maio de 1974, a Almirante Reis era um mar de gente, a cantar, dar vivas, com cartazes, bandeiras e faixas, na praça do Areeiro não cabia mais ninguém, tudo a caminho do estádio que fica bem perto daqui e onde foi uma grande festa.

Serei, talvez, o mais novo entre todos nós, adiantou um terceiro, vim para aqui uns poucos anos antes da Revolução, lembro-me muito bem do PREC e lembro-me que aqui no Jardim tocava uma banda de jovens que se chamava o Soviete de Roma, por causa da avenida e do cinema que cá havia… tocavam muito mal, era uma trapalhada de sons, mas eram muito animados e convictos. Um deles, hoje já homem feito e de cabelo branco, aparece na televisão, é um grande divulgador de valores sociais da música e músico talentoso.

O nosso bairro é relativamente recente no crescimento de Lisboa – pensavam todos – mas já enche a memória de todos nós e já lhe cabem pedaços da história da cidade. 

Tem o nosso bairro uma grande virtude – disse um velho, tido por muito conhecedor entre os outros – foi planificado, ou seja, passou da prancheta dos urbanistas para o terreno sem grandes modificações, como a Baixa ou as Avenidas Novas, e de acordo com o seu tempo, e por isso é que aqui há jardins, escolas, Igrejas, piscinas. Já houve muitos cinemas, livrarias, toda a espécie de comércio, edifícios públicos onde trabalha muita gente, moradias e prédios de muitos andares…

Artigos Relacionados