No último número de A Voz do Operário, o artigo publicado sob o título Uma cidade de montras vazias fez chegar recordações a muitos velhos e possivelmente muitas lágrimas ao canto dos olhos.
Para aqueles que já contam dezenas de anos de idade vieram ter com eles as montras da Kermesse de Paris, junto à Estação do Rossio, que vendia brinquedos ou da Pastelaria Suíça, no Rossio e cujas montras estavam repletas de bolos de todos os feitios e sabores. Haverá alguns que ainda terão na memória a “guerra das montras” quando, durante a Segunda Guerra Mundial, Aliados e nazis disputavam montras para lá exibirem propaganda dos seus feitos. Ganhava em arrogância a Alemanha que dispunha da melhor montra de Lisboa, na esquina da rua do Carmo com a rua Garrett, mas maior atenção despertava entre a população aquela que a Inglaterra tinha na vitrine de uma cervejaria da rua da Palma, logo no princípio.
Dizia um velho, daqueles que se juntam no jardim do meu bairro: …ver montras dá para uma pessoa sonhar, mesmo que não compre nada.
Não pensaria assim o responsável por uma grande cadeia de supermercados num colóquio há tempos realizado em Lisboa sobre Urbanismo Comercial. Ao ser abordado o papel dinamizador da vida de relação que se estabelece em qualquer espaço público onde haja “lojas com montra para a rua”, opinou ele que o papel do supermercado não era vender sonhos mas sim vender aquilo de que as pessoas precisavam e, se possível, vender aquilo de que as pessoas não precisassem e para isso elas deveriam ser “fechadas” em edifícios sem montras e as compras deveriam ser automatizadas, sem a necessidade de entrar numa loja, cumprimentar ou ser cumprimentado por quem o atendesse ou de estabelecer qualquer tipo de diálogo com quem inclusivamente orientasse a escolha. Note-se que, dizem os dicionários, atender significa dar atenção, ouvir, responder, cuidar ou mostrar a mercadoria.
Seria necessário só olhar, estender o braço, encher o carrinho, pagar e sair. Um algoritmo de grande simplicidade onde só caberia o “preciso, não preciso mas está em promoção”. Compro.
Descaiu-se ele, já fora do âmbito do colóquio, em conversa informal, ao revelar alguns estratagemas para atingir aqueles fins: …a carne e outros bens essenciais para a alimentação vendem-se no fundo da grande superfície, em relação à entrada e depois do comprador ter percorrido o maior número possível de metros lineares de prateleiras; os bens que forneceriam maiores lucros à empresa deveriam estar à altura dos olhos e os chocolates, as guloseimas e a “literatura de centro comercial” junto às caixas, enquanto as pessoas esperam e olham à sua volta.
Alguém interveniente no referido colóquio estranhou que uma cadeia implantasse um supermercado num bairro de iniciativa municipal onde o nível de rendimentos era relativamente baixo em relação ao conjunto da cidade, ao que ele respondeu que a sua atividade contemplava a classe C, definindo assim a família alvo representativa dessa classe:
fazem compras ao sábado e para toda a semana; para eles fazer compras é um ato simultaneamente necessário e lúdico; é constituída por um pai, uma mãe, dois filhos de sexos diferentes, a avó ou a sogra; e, por necessidade ou opção, destinam grande parte dos seus rendimentos à alimentação.
Depois acrescentou que a gerência da cadeia de distribuição a que pertencia nunca calendarizava a abertura de uma grande superfície em ano de eleições autárquicas e isso porque tinha a noção de que essa abertura estiolaria todo o comércio tradicional num raio de 500 a 600 metros, provocaria falências, encerramentos, desemprego e sentimentos de revolta em alguns setores da população, além do que afetaria o bom nome da empresa e abalaria o valor eleitoral do executivo que licenciara o empreendimento.
A verdade é que as grandes superfícies comerciais vieram para ficar. Facilitam a vida a grande parte da população, mas no bairro onde eu vivo todos temos saudades da leitaria do senhor Zé, da pequena livraria do senhor Barata, quando era pequena ou da mercearia do senhor Pacheco que vendia arroz e bacalhau e acompanhava Hermínia Silva à guitarra (anda Pacheco, dizia ela…).
À parte do saudosismo não será possível a coexistência das grandes distribuidoras e do pequeno comércio? Talvez a resposta esteja num planeamento coerente e integrado onde tanto caibam os abastecimentos, como a cultura. Porque a conveniência é um ato de cultura.