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Bairro Penajoia djunta mon

“Portugal tem uma das maiores crises habitacionais da Europa”1, é o que nos diz o mais recente estudo da Causa Pública. O estudo refere que o direito à habitação tornou-se praticamente impossível num país em que os preços das casas subiram muito mais do que os salários – com um acréscimo de 81% entre 2013 e 2023. A Área Metropolitana de Lisboa, que inclui a Grande Lisboa e a Península de Setúbal, teve dos maiores aumentos registados. Acresce a escassez de políticas públicas habitacionais, a par da liberalização do mercado de arrendamento e da financeirização do setor imobiliário, com fortes incentivos à aquisição de casa própria para a classe média2. E sem esquecer o impacto do turismo, a receita perfeita para lembrar que ter o direito à habitação consagrado constitucionalmente não é garantia de coisa nenhuma quando não se vive em socialismo.

Ilustração: Luís Alves

É neste cenário desastroso que uma grande parte dos trabalhadores se vê sem acesso à habitação digna, o que se agrava no caso da população migrante, a qual não consegue reunir as condições exigidas pelo regime de arrendamento, ou por senhorios criativos: documentos comprovativos disto e daquilo, fiador, adiantamento de renda no valor de meses e mais qualquer coisa. Muitas das vezes, o contacto com o possível senhorio termina mal este se apercebe que está a lidar com migrantes, e com classe baixa. 

Foi esta a realidade que levou a população do Bairro da Penajoia, em Almada, a ocupar um pedaço de terreno público propriedade do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), entidade pública promotora da política nacional de habitação. Desde os anos 1980 que portugueses, cabo-verdianos, angolanos, guineenses, são-tomenses e novas gerações de portugueses dão vida ao Bairro e compõem a tal Nova Lisboa que Dino D’Santiago canta. Aqui, como em toda a periferia, habita força de trabalho essencial à economia, que todos os dias se desloca até Lisboa para executar trabalhos que permitem o normal funcionamento da cidade – aqueles e aquelas a quem não foi possível ficar em teletrabalho durante a pandemia Covid-19. Numa extensão da colonização de outrora, a importação de mão-de-obra barata faz parte de uma estratégia económica que insiste em perpetuar a exploração de uma classe em benefício de outra. Se eles e elas param, a Área Metropolitana de Lisboa para.

Em junho de 2024, o IHRU invocou interesses de ordem pública num Edital em que ameaçava limpar o terreno do que considera serem ocupações ilegítimas. A polícia apareceu no bairro acompanhada de máquinas, mas a decisão política de desalojar famílias com crianças sem qualquer alternativa de habitação acabou a não avançar – respeitando, talvez, o previsto na Lei de Bases de Habitação (Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro). Seguiram-se reuniões com o IHRU e com a Câmara Municipal de Almada (CMA) e um “jogo do empurra de responsabilidades”, como descrevem os moradores, que reflete a deterioração das relações entre Estado central e poder local e o problema da descentralização de competências nos Municípios, numa batalha por obrigações que nenhuma das entidades públicas quer assumir. Reuniões pacíficas, refere-se, mas sem soluções à vista. António Benjamim Costa Pereira, do IHRU, e Inês Medeiros, presidente da CMA, do PS, são os responsáveis diretos pela inquietação que se instala no bairro.

Vidas precárias em construção

Entre relações de amizade, família e vizinhança, muniram-se de recursos próprios e levantaram casas num terreno abandonado pelo IHRU para “sair da renda e evitar a rua”, dizem. “Se querem que continuemos a vir para cá trabalhar, têm de nos dar condições”, reivindica um dos moradores frente ao ponto de encontro do Bairro, a que chamam Sorriso. Estes moradores, que preferem que as suas identidades se diluam no coletivo, nem sempre sentem que o país também lhes pertence.

É frente ao Sorriso que a Comissão de Moradores inicia mais uma assembleia, com cerca de 40 pessoas, num domingo de Inverno que soa promissor. Entre eletricistas, pedreiros e canalizadores, criam grupos de trabalho e tomam decisões em nome do interesse do coletivo.

A assembleia foi decorrendo, com intervenções sobre diferentes perspectivas, expectativas e ainda sobre como se sentiam. A falta de luz e água que agora os atormenta foi tema principal, revelando a urgência do assunto em pleno Inverno. Discutiram-se pontos técnicos e, aos poucos, as diferentes perspetivas vão-se encontrando, no que é o normal decorrer de um processo de organização coletiva em tempos de urgência.

“É organizar!”, relembra uma das moradoras. As mulheres também se fazem ouvir, mais focadas na gestão dos resíduos e preocupadas com a incerteza do despejo que inevitavelmente paira no ar.

Mas a vida vai acontecendo normalmente no bairro. As crianças brincam na rua, a vizinhança entreajuda-se e o sentido de comunidade faz-se sentir, provando que ainda é possível sonhar um futuro coletivo em que os cuidados entre todos e todas prevalecem.

Corte na eletricidade: tática de hostilização?

A denúncia de centenas de pessoas sem acesso à eletricidade foi feita, em Dezembro, pelo movimento Vida Justa. Uma intervenção na iluminação pública e o fornecimento doméstico que nem para ligar aquecimento dava, de tão precário, foi-se. Ficaram sem conseguir armazenar comida, tiveram de deitar alimentos ao lixo. O caso do Bairro da Penajoia extravasa o entendimento de pobreza energética que assola o território nacional3: aqui, trata-se da falta de eletricidade e de como o acesso a energia ainda não é um direito universal em Portugal.

O processo de desmantelamento do setor energético português, levado a cabo desde os anos 1980, retirou o Estado da coordenação do mercado energético e atirou os municípios para um emaranhado de legislação e regulação que os torna reféns de contratos de concessão e de entidades como a E-Redes – Distribuição de Eletricidade S.A.. Embora a atividade de exploração da rede de distribuição de energia elétrica em Baixa Tensão, que integra a iluminação pública e o fornecimento de energia elétrica a consumidores domésticos – não incluindo a comercialização -, seja um direito exclusivo dos municípios, estes tendem a refugiar-se nos contratos de concessão para os quais são empurrados. 

Sobre este assunto, a Comissão de Moradores marcou presença na última Reunião de Câmara Pública do passado dia 3 de fevereiro, na qual voltaram a expor a situação, buscando algum tipo de decisão. Inês Medeiros esclareceu que o executivo camarário até poderia agir, mas que nada fará sem iniciativa do IHRU. Esquivou-se do assunto, acusando este Instituto de inércia e invocando a E-Redes numa discussão em que as hipóteses de solução para Penajoia ficaram perdidas no meio de acusações partidárias, com uma Moção da CDU que tentava sugerir algum tipo de desenlace a ser chumbada.

Direito de resistir: nenhum bairro é ilegal

Cerca de quatro décadas de ocupação permitiram que aqui se estabelecesse um bairro, num processo de organização que traz à memória vivências de alguns dos bairros construídos durante a operação SAAL – Serviço de Apoio Ambulatório Local -, levada a cabo no âmbito de uma política pública que promoveu o acesso à habitação a milhares de famílias em Portugal4

Na mesma reunião de dia 3 e sobre o tema da habitação,  Inês Medeiros limitou-se a culpar o IHRU  e a declarar que daria sempre “prioridade aos almadenses” no âmbito da Estratégia Local de Habitação 2019-2029 que se encontra em marcha. Como se quem vive na Penajoia não fosse almadense e como se não existisse uma Lei de Bases de Habitação, Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro,  que prevê a universalidade do direito à habitação e que, por acaso, também se aplica aos municípios. 

O IHRU e a CMA têm as competências e os recursos necessários para tomarem decisões que respondam às necessidades e vontades da população do Bairro da Penajoia. A engrenagem institucional não pode ser um entrave à justiça social e o interesse de ordem pública invocado pelo IHRU não pode servir de arma de arremesso contra o direito à habitação dos 600 agregados familiares que se estima existirem no bairro. 

Espera-se que as demolições do passado dia 23 de janeiro não façam parte de um plano faseado com vista à desocupação do terreno, no que foi uma opção política levada a cabo pelo IHRU com a conivência da CMA e que levou a que famílias ficassem sem tecto, no que se pode traduzir em despejos ilegais à luz do previsto na Lei de Bases de Habitação.

Face a ameaças exteriores, há que juntar as mãos e lutar, e a Comissão de Moradores do Bairro Penajoia assim fará. Djunta mon, como se diz em Cabo Verde. 

1 https://causapublica.org/estudos/portugal-tem-uma-das-maiores-crises-habitacionais-da-europa
2  João  Rodrigues, Ana Cordeiro Santos, Nuno Teles, A financeirização do Capitalismo em Portugal, editora Actual, 2016.
3https://vozoperario.pt/jornal/2021/01/04/a-bater-os-dentes-quando-o-inverno-tambem-e-dentro-de-casa
4https://vozoperario.pt/jornal/2024/02/07/o-direito-a-habitacao-conquista-da-revolucao-de-abril

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