A ditadura militar no Brasil (1964/1985) foi uma das mais violentas e sinistras da América Latina. O golpe militar de Abril de 1964, visou impedir as reformas estruturais que o governo legítimo de João Goulard, acusado de ser “comunista” pelas elites e o poder económico que dominava o País, pretendia implementar, na tentativa de tornar o Brasil um território de todos, mais próspero e justo: desapropriações de terras não cultivadas; nacionalização das refinarias de petróleo; reforma eleitoral, garantindo o voto para os analfabetos; reforma do ensino em geral e do universitário em particular, permitindo, dessa forma, que as massas populares pudessem ter acesso ao ensino superior.
Tanto bastou para que os comandos militares do Brasil, muitos deles com formação nos E.U.A., começassem a preparar um golpe que derrubasse Goulard e o seu governo reformista. Contavam, para a tarefa, com o alto patrocínio americano, através do seu embaixador Lincoln Gordon, que «recomendou remessa clandestina de armas e petróleo e sugeriu que o governo americano preparasse uma intervenção. O presidente Lyndon Johnson autorizou o envio de uma frota ao Brasil. A missão: invadir Pernambuco se houvesse resistência.» (pp91/92) Os golpistas receberam, com este gesto, o sinal verde da Casa Branca para avançarem.
A ditadura durou mais de vinte anos e ceifou milhares de vidas de opositores, muitos deles mortos sem sepultura, torturou e obrigou ao exílio centenas de artistas, jornalistas e intelectuais brasileiros, entre os quais Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Augusto Boal (que esteve em Portugal e encenou alguns espectáculos no grupo A Barraca), o realizador Glauber Rocha. Actores foram espancados e os teatros encerrados. Os direitos cívicos e políticos foram proibidos, tal como as manifestações.
Ainda Estou por Cá, de Marcelo Rubens Paiva, é o relato pessoal de um sobrevivente à ditadura. Filho do deputado do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) Rubens Paiva que foi torturado e assassinado pelos golpistas (o seu corpo nunca foi encontrado), conta-nos a saga de uma família da média burguesia, em busca da verdade. Ele, as quatro irmãs e a corajosa mãe, irão revolver todos os gabinetes do poder à procura de respostas: o que aconteceu a Rubens Paiva, aonde está o corpo para que a família possa fazer o luto? Este romance é o relato da viagem de uma mãe e de um filho pelos caminhos do desespero, em busca de sinais de vida num tempo em que só havia gritos de viva la muerte!!
É um romance pungente, escrito numa linguagem ágil e directa, sem subterfúgios, que nos dá o retrato fiel do Brasil durante a ditadura fascista, a crueldade, a perfídia, as perseguições e o desastre económico, humano e social que o regime deixou, às gerações vindouras, como herança de 20 anos de ignomínia e de capitalismo selvagem.
Não é de estranhar, portanto, que este poderoso romance tivesse sido adaptado ao cinema pelo realizador Walter Salles, vencendo em Veneza o Prémio de Melhor Argumento, e se tornasse num dos filmes mais vistos no Brasil, permitindo à notável actriz Fernanda Torres o Prémio de Melhor Actriz. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, interpretam no filme a personagem Eunice Paiva, a mãe coragem, em diferentes idades.
Vejam o filme mas, sobretudo, leiam o livro dado que nele, nas suas 270 páginas, estão inteiras as dores, as lágrimas, o desespero e o sentido profundo de justiça de uma família que nunca desistiu de procurar a verdade e de lutar contra a opressão. Rubens Paiva, e nós com ele, ainda estamos aqui.
Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva – edição D. Quixote/2025.