Opinião

Literatura

O Factor Humano, de Nuno Martins

O Factor Humano, de Nuno Martins, é um ensaio raro. Não apenas porque se trata de um ainda jovem autor, Nuno Martins tem 45 anos, pertencendo, portanto, à geração do pós-25 de Abril, mas capaz de uma análise arguta e sensível, sob uma visão contemporânea da realidade portuguesa hoje, ou seja, não contaminada pela memória dos anos de resistência e luta contra a ditadura salazarista/caetanista.

Nuno Martins nasceu, viveu e estudou em plena democracia, conheceu a liberdade de viajar, de ler, de ver, de sentir, de escolher caminhos, amigos, lugares. De reflectir sem amarras, sobre um espaço, este país e suas gentes, de o sentir pulsar generoso e límpido, derivar livremente, de o saber ingrato, distraído, vulgar, a tropeçar no lixo mediático, a inverter valores de solidariedade, a transformar anódino e paulatinamente, o Nós colectivo de Abril, as esperanças que os dias levantados de Maio e Março representaram para que pudéssemos almejar, com o povo miúdo deste país desigual, um futuro amplo e justo, num Eu alienado e mesquinho, perdido na voragem dos dias da usura e do consumismo larvar, da devassidão, do retrocesso civilizacional, do racismo, da violência gratuita.

O Factor Humano, de Nuno Martins é um retrato lúcido e substantivo de uma geração que não é de esquerda nem de direita, mas de Centro Comercial, diz-nos o autor com acutilante humor, para logo citar Gramsci em mais séria análise: Eu odeio os indiferentes. Este livro de Nuno Martins é, assumidamente, sobre a indiferença, um corajoso manifesto contra o cinismo e o oportunismo que estrangula os nossos dias, contra a civilização das desigualdades, que tudo desbarata em nome de um único e desumano objectivo: alcançar o poder e submeter o Outro, os Outros, tirar vantagem de uma função que já foi nobre, que já esteve nos sonhos dos homens que fizeram Abril, que lhe abriram as portas e as janelas da claridade e da lisura: o poder como essência ética, como modo de servir o bem-público, como desígnio colectivo. O sonho de um país limpo e justo, a utopia possível.

O liberalismo não é neutro, atrela-se a um programa global de conformismo e subjugação dos incautos, a sua agenda é a exploração sem freio nem medida.

Os grandes nomes da cultura contemporânea, os que melhor souberam pensar o século XX e os seus temores, e os que atravessaram este século de brumas e sobressaltos, estão presentes neste ensaio de Nuno Martins, convocados pelo autor para com ele e com os seus leitores, nos ajudarem a abrir clareiras nesta estrumeira que nos tenta cegar e em que este século parece querer arrastar-se, sob a sombra aterradora de um holocausto nuclear, que já não é apenas retórico, que o ameaça. A direita mais violenta, a que não olha a meios para impor a sua imperial vontade, está no poder em grande parte do mundo ocidental e, em Israel, vem tentando, em discursos de ódio e desespero, intimidar-nos quanto a essa possibilidade. Este O Factor Humano, de Nuno Martins, diz-nos, invetivando a farsa cínica deste pequeno mundo, que há quem esteja atento, quem tenha percebido a estratégia que lhes comanda os gestos e a narrativa, a eles se oponha e desmascare, com as armas do pensamento e da razão, da arte e do humanismo.

Um fulgido e indispensável livro, que nos alerta e questiona, de forma inteligente e culta, sobre os tempos sórdidos e rapaces que vivemos.

O Factor Humano, de Nuno Martins, Edição Fénix/2024.

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