A vida à flor das águas

Um céu aberto e outro fechado – uma viagem com Fausto Bordalo Dias

Quando olharmos para trás veremos esse homem misterioso que nasceu no mar e que nos embalou num sonho para nos voltar a acordar, para depois adormecer e acordar, uma e outra e outra vez, no movimento ondulante da Terra que habitamos juntos.

Fausto Bordalo Dias, nascido no mar, falece em Lisboa, aos 75 anos.

Diz-se que a canção de intervenção está sempre cheia de metáforas, não só para escapar à censura, mas para dar uma dimensão trágica muito maior ao gesto da repressão. São muitos os exemplos disso na nossa música popular resistente ao fascismo: obras repletas da mais bela poesia musicada ou escrita de propósito para as canções; dança de palavras na matemática da música; revolta e ternura na metáfora e no timbre. Houve sempre alguém que nos ajudou a compreender melhor e a expressar melhor a emoção que um mundo sem sentido provoca em nós. Até mesmo de boca fechada, murmurámos canções e elas fizeram de banda sonora ao nosso olhar cheio de raiva e de sonho. São canções que ainda hoje transportam a história, que contam histórias deste e de outro tempo e que nos dão um profundo sentimento de esperança, porque também elas conheceram a noite escura e viram a manhã da liberdade nascer. 

Continuar a escrever canções em liberdade com a densidade das que compusemos em pleno fascismo não é uma tarefa simples. A cantiga como arma foi perdendo o lugar e sendo substituída pelas pequenas alegrias e tristezas do quotidiano. As canções passaram a colocar o indivíduo no centro do mundo, fechado sobre os seus dramas pessoais e as suas mais subjetivas circunstâncias. Assim nos fomos despedindo daquele caráter revolucionário e acolhemos, ou não, novos rumos criativos. 

Com Fausto Bordalo Dias nada disto aconteceu. A sua fase mais criativa, mais reconhecida e cheia de elementos simbólicos, metafóricos e históricos surge na década de 1980, sobretudo com o lançamento da sua obra maior “Por este rio acima” – um álbum que pega no malogrado Fernão Mendes Pinto e agita as nossas águas, as nossas certezas e convicções. 

Com Fausto nunca sabíamos se estávamos a ouvir falar de amor ou de guerra e em cada palavra havia um mapa para descobrir a natureza das coisas. Em cada referência tradicional, de instrumentos e modas que a música moderna e o mercado queriam esquecer, havia uma sofisticada metáfora para a circunstância mais atual e contemporânea. Foi o Fausto que não nos deixou esquecer o terror da guerra; que nos alertou muito cedo para a exploração dos homens e para a urgência ecológica; que nos apaziguou numa posição de igualdade de género; que relativizou a perda sem mágoa. Todos nós, de certa forma, vimos em Fausto o nosso fauno que mostra o real para lá da fantasia da floresta, com a voz doce e o dedilhado terno sobre harmonias complexas, como um tritão subindo rios. 

Todos nós, de certa forma, vimos em Fausto o nosso fauno que mostra o real para lá da fantasia da floresta, com a voz doce e o dedilhado terno sobre harmonias complexas, como um tritão subindo rios. 

Com o passar dos anos, o Fausto envelheceu e perdeu algumas das qualidades que lhe reconhecíamos. Ouvimo-lo dizer coisas feias, cheias de rancor e preconceito. Não é fácil quando aqueles que admiramos vão perdendo o sítio e nesse desvio arrastam o sonho de um mundo que partilhámos. Zangamo-nos com eles e nem sempre conseguimos perdoar. Outras vezes esquecemos. Outras, ainda, relativizamos porque vemos que há, em todo este processo, um efeito tão violento do envelhecimento que somos forçados a reconhecer que é a lucidez que também está a desaparecer. Nada disto é fácil.

Há pouco menos de dois anos, Fausto despediu-se dos palcos num concerto que não deixou ninguém indiferente pela sua incapacidade de acompanhar as canções. Creio que todos os que ali foram estavam conscientes do que iriam encontrar. Mas o carinho pelo que Fausto representava para todos nós fez esquecer os desvios e dislates que tanto nos entristeceram nos últimos anos.

Os artistas do nosso tempo são também responsáveis pela forma como entendemos o tempo e o espaço. São som e imagem, personalidade em construção e são memória. Associamos a sua juventude à nossa juventude. Associamos o seu rosto e a sua criação àquela construção da nossa personalidade. Quando os artistas perdem faculdades de forma tão brutal nasce em nós não apenas uma profunda tristeza, mas um choque de realidade, porque também nós já não somos os mesmos. E, de certa forma, todos esperamos que nos compreendam a dificuldade em lidar com as transformações e transições, que se lembrem de nós pelo contributo que demos para um mundo em que a paz, a justiça, a igualdade, o amor e a solidariedade assumem um lugar essencial. 

Pouco faltará para que todos perdoemos as coisas insignificantes. Quando olharmos para trás veremos esse homem misterioso que nasceu no mar e que nos embalou num sonho para nos voltar a acordar, para depois adormecer e acordar, uma e outra e outra vez, no movimento ondulante da Terra que habitamos juntos. Como um sonho lindo nunca acabado.

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