Josep Borell, chefe da diplomacia da UE, referiu-se recentemente ao problema ocidental como «um difícil dilema»: o que fazer perante bombardeamentos sistemáticos de campos de refugiados? O que dizer a um aliado que priva milhões de pessoas de acesso à água, à comida, à electricidade, a cuidados médicos e a medicamentos? Como justificar a punição colectiva de um povo, a que o governo israelita publicamente chama «animais»? Como reagir às imagens incessantes de crianças aterrorizadas, mutiladas, desnutridas, desfeitas em pedaços? Como explicar que são precisamente as «democracias ocidentais» os únicos arrimos diplomáticos e militares do genocídio em curso? O dilema de Borell é tanto maior quanto mais óbvia for a resposta: a escala da barbárie é tão grande, os números são tão esmagadores, as imagens são tão indesmentíveis e as declarações de intenções dos sionistas são tão claras, que se torna muito difícil conciliar os míticos «valores europeus» com o apoio ao projecto colonial e genocida do Estado de Israel.
A manutenção da hegemonia dos EUA e dos seus apêndices ocidentais exige evitar que esse dilema insolúvel convide milhões de ocidentais a desmascarar a grande hipocrisia em que assenta esta tão desigual divisão internacional do trabalho, do poder, da riqueza e dos recursos do planeta. Portanto, quanto mais óbvia é a hipocrisia, mais violenta e anti-democrática tem de ser a censura e a repressão exercidas, surpreenda-se quem ande desatento, em nome da «democracia», da «liberdade de expressão» e dos «valores ocidentais»
Em nenhum país do mundo essa contradição se tornou mais flagrante do que nos EUA. Desde 17 de Abril de 2023, o protesto dos estudantes universitários estado-unidenses contra o genocídio em Gaza alastrou a mais de 150 universidades e a 45 dos 50 Estados. Eco histórico das grandes manifestações contra a guerra do Vietname na década de 60, quase um milhão e meio de alunos, oito por cento de todos os estudantes universitários daquele país norte-americano, têm mantido acampamentos, greves e boicotes para exigir que as suas instituições de ensino superior cortem laços com quaisquer entidades implicadas no massacre israelita. A resposta da maioria das universidades, dos governos estaduais e do próprio governo federal tem sido a repressão policial. O que diríamos se, na China, na Venezuela, ou em Cuba, mais de 3000 estudantes e professores universitários fossem detidos? Como é que os pivôs dos telejornais europeus apresentariam as imagens de estudantes desarmados e pacíficos a serem espancados pela polícia ou por coligações armadas de neonazis e sionistas (!), como aconteceu em Los Angeles?
Este mês, o Congresso dos EUA deu mais um passo nesta direcção, aprovando, por consenso bi-partidário, mais um Anti-semitism Awareness Act, uma lei que, sob o disfarce do combate ao anti-semitismo, blinda Israel de qualquer crítica. Em causa está a definição de anti-semitismo, um termo que, como próprio judaísmo, foi sequestrado pelo sionismo para justificar o injustificável. Anti-semitismo passa a querer dizer, para todos os efeitos judiciais, «denunciar a política de Israel». A título de exemplo, a nova lei prevê penas de prisão para quem «compare a política de Israel à política dos nazis» ou para quem «coloque em causa, mesmo que indirectamente, a existência do Estado de Israel». Sem surpresa, são já centenas os processos-crime por «anti-semitismo» movidos contra estudantes e professores estado-unidenses que se atreveram a erguer a voz contra a hecatombe sionista. Em vários Estados, como a Florida, quem denunciar o genocídio em Gaza fica legalmente excluído da docência e pode ser despedido ou expulso da universidade.
Há, evidentemente, uma «excepção israelita» nos critérios ocidentais de liberdade de expressão, direitos humanos e restantes «valores ocidentais». Mas essa excepção não tem nada a ver com anti-semitismo. «Judeus pela Palestina», «Judeus pelo cessar-fogo» e «Voz Judaica pela Paz» é o nome de três das organizações que, neste momento, estão a braços com acusações de anti-semitismo.
O genocídio cometido pelo Estado de Israel destapou, para amplas maiorias sociais no mundo ocidental a grande hipocrisia moral do imperialismo. Falta que essa conclusão nos leve a questionarmo-nos sobre a viabilidade da solução de dois Estados no contexto actual. Não foi essa a solução para o Apartheid sul-africano nem para o colonialismo português, nem poderia ter sido: quando a raiz do problema é o colonialismo, o caminho para a paz passa pela descolonização e não pela partição.
É que o mundo não está apenas a assistir ao massacre do povo palestiniano, está também a assistir à imparável expansão ilegal do território israelita. Não são só as fronteiras de 1967 que ficam cada mais longínquas, mas igualmente a possibilidade de um dia alguém poder aceitar como vizinho um racista que nos quer matar e roubar a casa. Israel insiste que esta mortandade indiscriminada de crianças e mulheres é absolutamente necessária à sua sobrevivência. Queremos mesmo que um Estado assim exista, se a sua existência depende do genocídio?