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Maria Lamas: uma Mulher do seu País

Escritora, jornalista, ativista dos direitos das mulheres e da paz e narradora de histórias, permanece um símbolo na luta antifascista em Portugal e uma expressão incontornável da resistência e luta organizada das mulheres portuguesas pela sua emancipação. As Mulheres do Meu País é a obra incontornável de Maria Lamas.

Ilustração: Luís Alves

Maria da Conceição Vassalo e Silva da Cunha Lamas, Maria Lamas, nasceu a 6 de Outubro de 1893 em Torres Novas, ou seja há 130 anos. Maria Lamas, a escritora, a jornalista, a activista dos direitos das mulheres e da paz, a narradora de histórias, permanece um símbolo cintilante na luta antifascista em Portugal e uma expressão incontornável da resistência e luta organizada das mulheres portuguesas pela sua emancipação.

Escreveu poesia, romances, contos infantojuvenis, crónicas, novelas, folhetins, reportagens e recensões em publicações locais e sob diversos pseudónimos, mas a atividade jornalística foi o elemento marcante na sua trajetória. Nos anos 20 do século XX, integrou a Agência Americana de Notícias com o apoio da jornalista e amiga Virgínia Quaresma, tornando-se numa das primeiras jornalistas profissionais em Portugal. No jornal O Século, destacou-se pelo trabalho desenvolvido no semanário Modas & Bordados

Várias situações que envolviam Maria Lamas comprovaram os seus ideais de solidariedade e fraternidade, valores compartilhados por quem deseja uma sociedade mais justa. Em 1930 promoveu, neste jornal, o projecto da sua autoria e coordenação Mulheres Portuguesas — Exposição da obra feminina antiga e moderna de carácter literário artístico e científico, que durante um mês deu visibilidade ao património intelectual e criativo criado por mulheres no país (Fiadeiro, 2003). Sete anos mais tarde, enquanto diretora do suplemento, organizou a exposição Tapetes de Arraiolos executados pelas mulheres presas na cadeia das Mónicas. A compreensão muito atenuada acerca da condição feminina e da sua debilidade em Portugal levou Maria Lamas a exigir à directora da instituição, Dr.ª Maria Arantes, que as reclusas visitassem a exposição e fossem trazidas para o salão do jornal em táxis fretados na ocasião da inauguração (Fiadeiro, 2003). Esta ação concedeu-lhes uma experiência única. Assim, tornava-se evidente a preocupação de Lamas em mediar uma vivência que elevasse o espírito, tanto destas mulheres em particular, quanto a nós, quando nos envolvemos nestes episódios.

O fim da II Guerra Mundial trouxe a maior vaga de esperança coletiva na Europa e no mundo sobre a queda do nazi-fascismo. Tal entusiasmo chegou até ao Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP) (1914-1947), a organização feminista portuguesa de maior longevidade na História do Século XX e na qual integravam opositoras do Estado Novo. O fôlego que o Conselho teve sob a presidência de Maria Lamas, entre 1946 e 1947, não pode dissociar-se da conjugação de forças para derrubar o regime fascista. Na sequência da forte influência do CNMP junto das mulheres, da crescente adesão de novas sócias, sobretudo dirigentes e militantes anti-regime, e o sucesso da Exposição de Livros Escritos por Mulheres de Todo o Mundo (1947) na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, que pretendia valorizar e enaltecer as mulheres no domínio intelectual, o governo ordenou o seu encerramento em 1947. O desfecho da última organização feminista que persistia desde a I República e o despedimento de Lamas da direção do Modas e Bordados foram entendidos por si como um gesto de represália do regime e um momento crucial de reflexão sobre a categoria normativa e excludente das mulheres em Portugal.

Afastada do O Século e na condição de recém-desempregada, Lamas lançou-se na concretização de uma série de ideias que teria alimentado tempos antes, dando azo a um projeto que desembocou na composição do livro As Mulheres do Meu País (1948-50), o seu magnífico canto do cisne do jornalismo e, simultaneamente, o seu grande desafio profissional e pessoal, uma obra de grande fôlego e mérito, um clássico (Fiadeiro, 2003).

Entre paisagens e aldeias do país, durante dois anos recolheu anotações e registos fotográficos da geografia física e humana que questionaram a viabilidade da representação e o papel subalterno das mulheres que o regime salazarista produziu e circunscreveu. O resultado foi uma das mais extensas, detalhadas e emblemáticas reportagens sobre a realidade das mulheres trabalhadoras portuguesas e um veículo datado para a construção da consciência política, num período em que lhes eram negados todos os direitos. Em As Mulheres do Meu País, considerado por si própria como o seu livro mais importante de todos (Cid, 1976), Maria Lamas afirmava uma chamada à responsabilidade individual e coletiva e à apreensão imaginativa de possibilidades, cujas personagens principais, as mulheres portuguesas, foram traçadas à dimensão de sujeitos da história de um país submetido à censura, ao controlo do pensamento, ao obscurantismo, à pobreza e à violência. 

Se para o Estado Novo a “mulher” tinha um papel social predeterminado sustentado pela procriação e responsabilidade da gestão do espaço doméstico, a observação direta das particularidades do status matrimonial e da presença no mercado de trabalho denunciaram-nas como condições culturais generalizadas na base do seu miserabilismo. 

As imagens reveladas na obra perturbam o binómio homem-mulher, trabalho-vida doméstica e obrigações femininas-masculinas. Fisicamente visíveis, publicamente invisíveis, as mulheres fotografadas trabalhavam em condições precárias e muitas vezes insalubres. “Todas as mulheres do povo se parecem umas com as outras, vivam onde viverem” (Lamas, 1950, p. 204). Condenadas pela lei e convicções dominantes, “trabalhavam conforme as tarefas de cada época, pariam, aleitavam, estavam sempre à frente de todos os protestos, se pressentissem a ameaça de um agravamento nas condições, tão precárias, do seu viver” (Ibidem, p. 26).

A obra As Mulheres do Meu País não se desassocia da excepcionalidade intelectual da sua autora. Foi através do desejo análogo de inverter as perspectivas tradicionalistas e revelar a presença real das mulheres na história quotidiana, que Maria Lamas sustentou a sua luta. Não se trata da experiência da Mulher, mas uma experiência inculcada na solidariedade entre mulheres. “A defesa dos seus interesses, leva-as a unirem-se, instintivamente, tornando-as solidárias em muitas opiniões e em tudo quanto se relacione com o trabalho coletivo. Embora desinteressadas da vida associativa, vão compreendendo o significado da camaradagem”. (Ibidem, p. 202). As mulheres são representadas dentro de uma ideia de realidade e crueza, sem fantasias sociais e fora do cânone que representa a super feminilização do corpo já visto anteriormente. Um corpo feminino defendido sob o pretexto da fragilidade e do biologismo (usando como justificativa a maternidade) entra em choque com os corpos das mulheres representadas no livro. 

Mulher de ação e um exemplo de participação, Lamas desenvolveu durante a sua vida uma intensa atividade contra o fascismo e pela defesa da paz. Em 1938, aceitou a presidência da Associação Feminina para a Paz (1935-1952). Assinou as listas para a fundação do Movimento de Unidade Democrática (MUD) em 1945, no qual ocupou cargos de direcção. A sua actividade prestigiosa estende-se internacionalmente, tendo participado no congresso fundador da Federação Democrática Internacional das Mulheres (FIDM) em Paris, em 1946, ao lado da cientista francesa, feminista e membro do Partido Comunista Francês, Eugénie Cotton, e em vários Congressos Mundiais da Paz. Pertenceu à comissão central do Movimento Nacional Democrático (MND), formado em 1949 numa sessão na Voz do Operário, e teve um papel ativo na candidatura de José Norton de Matos à Presidência da República, nesse mesmo ano. Tais ações originariam perseguições pela PIDE e encarceramentos na prisão de Caxias em 1949, 1950-1951 e 1953. Partiu para o exílio, por duas vezes, em Paris, o mais longo durou de junho de 1962 a dezembro de 1969.

De regresso a Portugal em 1969, viveu a Revolução dos Cravos na primeira pessoa. Numa conversa com a poeta Maria da Graça Varella Cid (1933-1995), Maria Lamas partilhou que “se a Revolução de Abril não tivesse trazido mais nada de útil, trouxe, pelo menos, em especial à mulher, a consciência de si própria e, simultaneamente das suas frustrações. E ter consciência das suas frustrações é já um princípio de luta” (Cid, 1976). Após 1974 tornou-se a presidente honorária do Movimento Democrático de Mulheres (MDM).

Maria Lamas é um expoente na luta pela causa feminina em Portugal até aos dias de hoje. Ao longo de sua vida combateu um regime duro que levou o país à extrema pobreza, mas principalmente combateu os ideais fascistas tão recorrentes na Europa do século XX. A sua filiação no Partido Comunista Português a seguir ao 25 de Abril de 1974 é fruto de uma equivalência de ideais, surgidos na senda da luta por uma sociedade mais justa e igualitária, onde a luta coletiva mostra-se como a única forma possível de atingir mudanças sociais relevantes.

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