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Memória

A Voz do Operário sob a ditadura: teatro com Rogério Paulo

Aquele 3 de janeiro de 1960 tornou-se um dia especial para a resistência à ditadura de Salazar.

Deu-se a célebre fuga de Peniche, por Álvaro Cunhal e outros quadros do PCP que tinham sido presos pela PIDE. Alguns deles há longos anos.

E foi o ator Rogério Paulo quem do exterior deu o sinal de partida. À hora combinada, passou em frente da prisão, conduzindo um carro com a bagageira aberta. Parou ali o carro, para a fechar. E seguiu viagem. Assim os fugitivos souberam que estava tudo pronto.

Pois nesse mesmo dia ele esteve n’A Voz do Operário, dando uma conferência sobre teatro.

No livro de visitas, deixou este registo: “Foi com a mais viva emoção e alegria que estive hoje na «Voz do Operário». Há muitos anos que me habituei a estimar a agremiação e só me resta agradecer a honra que me deram.” Rogério Paulo, 3/1/960.

Só mais tarde seria preso pela PIDE. Mas naquela altura já era um conhecido antifascista.

Tinha colaboração na revista Seara Nova. E dera a cara pela oposição, numas eleições falsificadas que a ditadura encenou em 1957. Além de ser militante do PCP, clandestinamente.

Anton Tchekhov

Rogério Paulo encenou a primeira peça que o «Teatro da Voz do Operário» estreou, em junho de 1960. Era um original de uma participante no grupo, Maria Teresa Rita.

Dessa experiência partiram para um dos maiores dramaturgos a nível mundial, o russo Anton Tchekhov. E dele representaram «A Boda», em janeiro de 1961.

Dois meses depois, realizou-se n’A Voz do Operário uma “noite de teatro de Tchekhov”. Das Caldas da Rainha veio o «Conjunto Cénico Caldense», que pôs em cena as peças «O Urso» e «Os malefícios do tabaco». Enquanto a ‘equipa da casa’ voltou a apresentar «A Boda».

A seguir ao 25 de Abril, Rogério recordou o seu trabalho como encenador de Tchekov n’A Voz do Operário. Explicou que, “durante o fascismo, nos anos quarenta e cinquenta, os que, entre nós, buscavam transmitir através do teatro o seu desespero, a sua esperança e a sua ânsia de vencer a «mediocridade ambiente», encontraram em Tchekov o autor que lhes servia”.

A seu ver, “não era muito diferente o Portugal dessa época da Rússia dos finais do século XIX”, que Tchekhov havia retratado: “paz podre dos cemitérios, resignação em muitos, comodismo noutros tantos e uma enorme esperança em muitos que acreditavam e colaboravam com os clandestinos da «noite fria»”.

Naquele contexto, Tchekov “surgiu como o autor ideal, não só pela força da sua temática como pela possibilidade de o apresentarmos”. É que “a censura fascista não se atrevia a proibi-lo como fazia com obras de autores portugueses”. Pois “parecia mal e (que diabo!) tinha morrido em 1904, treze anos antes da Revolução Bolchevique, era representado em todo o mundo”. E “não constava que tivesse pertencido a nenhuma organização comunista…” [«Notícias da Amadora», 23/02/1980, pág. 8].

Conferência

Quanto à conferência de Rogério Paulo, no dia da fuga de Peniche, o tema foi a «Actualidade e perspectivas do teatro em Portugal”. Terá começado por saudar “as virtudes dos teatros amadores imprescindíveis para a concretização de uma cultura popular autêntica e duradoura”.

Observando, depois, a história dos públicos de teatro através das épocas, traçou a seguinte evolução: “Esses públicos são logicamente, em primeiro lugar, as classes dominantes, porquanto a produção teatral acompanha o público a que se destina. Durante muito tempo trabalhou-se para a aristocracia, fustigando os falsos aristocratas, procurando corrigir os ridículos mas sem nunca tocar no que de essencial constituia a ordem social estabelecida.”

E continuou: “Mais tarde, com o advento da burguesia, o Teatro começou a ser orientado no sentido da classe dominante. No final do século XVIII a classe progressiva era a burguesia. E os autores burgueses surgiram. Alguns foram extraordinários, sobretudo os primeiros, caso de Carlo Goldoni.

Mas com o decorrer dos tempos, o teatro burguês atrasou-se, ficando limitado aos estreitos limites das ambições burguesas”.

Com a derrota do nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial, “o Povo surgiu como a classe triunfante. E todo o teatro atual, realmente digno de nota, deve ser, e é, um Teatro Popular. Isto é, um Teatro destinado a elevar o Povo, a consciencializá-lo. Um Teatro que o possa servir e não um teatro que o afaste ou rebaixe” [«República», 03/01/1960, pág. 2].

Receio da ditadura….

A direção da sociedade A Voz do Operário reuniu-se dois dias depois. Segundo a respectiva ata, o então tesoureiro, Jorge Valente, “congratulou-se pela maneira brilhante como decorreu a palestra que o actor Rogério Paulo veio realizar […] na nossa instituição, cuja assistência foi numerosa esgotando o salão da biblioteca” [Ata nº1, de 1960].

Mas também falou em formas de prevenir possíveis problemas com as autoridades da ditadura, em futuros eventos do género.

Afinal, já tinha acontecido antes, uma iniciativa cultural d’A Voz do Operário ser proibida no próprio dia…

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