Um mundo entre quatro paredes

Entrar no edifício da Graça d’A Voz do Operário é mergulhar num corrupio de atividades cujas fronteiras não se esgotam nas paredes da sede desta instituição que agora celebra 140 anos de existência.

Exibição do documentário Alcindo, de Miguel Dores.

Dos arraiais durante as Festas de Lisboa à Gala de Fado, dos debates ao Teatro d’A Voz, para além das inúmeras iniciativas culturais, recreativas e desportivas que fazem parte da atividade associativa d’A Voz do Operário, há um universo interligado de respostas sociais, um jornal e também aquilo pelo que é mais conhecida: o seu modelo educativo que engloba a creche, o pré-escolar, o 1.º e o 2º ciclo.

Um dos melhores exemplos da transversalidade de todos os níveis de ensino está no Projeto Interdisciplinar, uma disciplina criada pelo 2.º ciclo em que os alunos fazem projetos, de acordo com o modelo pedagógico, com a particularidade de que estes projetos envolvem várias disciplinas e são acompanhados por professores de várias disciplinas. É o professor Pedro Passarinho, um dos coordenadores do 2.º ciclo, que explica como funciona.

“O objetivo é tentar englobar o máximo número de disciplinas. No ano passado, com a Feira das Culturas, como estudámos os países do mundo, ou estudámos o mundo, acabámos por conseguir criar um projeto em que conseguimos abordar as disciplinas todas. Eles foram aprender músicas do mundo, danças do mundo porque é um conteúdo de educação física, comigo desenvolveram uma pesquisa sobre artesanato e património dos países que eles estavam a estudar, em história e geografia andaram a estudar a cultura, a história, factos históricos dos países, a própria geografia do país, em ciências andaram a estudar os animais, a fauna, a flora, a alimentação que também é um conteúdo de ciências, alimentações mais saudáveis, menos saudáveis, em matemática a estatística, portanto, relacionada com a população dos países e foi um projeto que culminou na Feira das Culturas”, descreve.

No fim de janeiro terminou outro projeto bem sucedido, desta vez um chá com scones confeccionados pelos próprios alunos, com um desfile de roupa, envolvendo, uma vez mais, várias disciplinas e também alunos do 1.º ciclo. O objetivo é, segundo Pedro Passarinho, aproximar os dois ciclos.

Mas dentro de cada ciclo, a verdade é que as turmas são mistas, trazendo grandes benefícios para os alunos. “A premissa é: não há conteúdos de quinto, não há conteúdos de sexto, obviamente que, se calhar, em matemática ou em português eles têm conteúdos que têm que ser sequenciais, mas, regra geral, eles podem estar no quinto ano a estudar conteúdos de sexto e no sexto a estudar conteúdos de quinto”, explica. O objetivo é chegarem ao fim dos dois anos com os conteúdos aprendidos permitindo aos alunos começarem por estudar temas de que gostam mais.

Outro aspeto que distingue as escolas d’A Voz do Operário é o funcionamento participativo e democrático. Pedro Passarinho recorda que esse é um dos pilares do Movimento da Escola Moderna. “Nós fazemos Conselhos de Cooperação, e o Conselho de Cooperação é um momento durante a semana em que lhes é pedido que tomem decisões sobre a vida deles, escolar. Ou seja, situações que aconteçam no recreio, no refeitório, em sala de aula, é-lhes pedido a participação deles. Ou seja, é preciso decidir se vamos para a direita ou se vamos para a esquerda, e é-lhes perguntado, e são eles que decidem se vamos para a direita ou se vamos para a esquerda. Com a nossa ajuda, estamos lá para ajudar, às vezes para puxar por eles e para lhes alertar para as consequências ou para os efeitos de se ir para a direita ou para a esquerda”.

É também neste espaço que os alunos fazem a avaliação do Plano Individual de Trabalho (PIT). Quinzenalmente, avaliam o PIT e, na outra quinzena, fazem a leitura do diário de turma, que é onde se tomam as decisões. “Se houver alguma coisa muito urgente, obviamente, é tratada antes, se for alguma coisa que pode esperar é tratada no Conselho. O Conselho é isto, é feito e é onde eles podem tomar decisões sobre um conjunto de coisas que os afeta a eles”, recorda.

Sobre as vantagens de aprender num espaço como A Voz do Operário com tanta a acontecer, Bárbara Ramirez, coordenadora educativa d’A Voz, refere que “nem sempre a gestão é fácil de fazer tendo em conta o número de pessoas que aqui se movem com tantas valências e atividades desde antes das 8h até horas tardias”. Os espaços são geridos de modo a promover momentos em que cada grupo ou grupos podem deles usufruir e também com outros momentos em que se pode ganhar muito por estarem todos juntos. “A proximidade de valências tão diferentes dá-nos muitas possibilidades de aprendermos mais uns com os outros”, explica.

Mas a escola, como A Voz do Operário, está aberta à comunidade. É o que acontece com o Coro Capella de São Vicente, destaca Bárbara Ramirez. “É um projeto que envolve todas as turmas do 2.º ciclo, como oferta complementar, incluída no tempo letivo do 2.º ciclo. Este projeto visa trazer o ensino do canto coral e conhecimentos de música que à partida não estão ao acesso de todos, a alunos que não estudam música”, explica.

Também alunos de outras escolas fazem parte deste projeto, onde aprendem, desde outubro, a usar o aparelho vocal para cantar em coro com o professor Pedro Rodrigues, um dos fundadores do Coro Capella de S. Vicente. Fruto desse trabalho, todos estes alunos, incluindo d’A Voz, deram um concerto no Convento de Mafra.

Uma resposta social com prestígio

Muito mais do que uma escola, A Voz do Operário inclui um departamento de Ação Social com três serviços em destaque: o Centro de Convívio, o Serviço de Apoio Domiciliário e o Refeitório Social. De acordo com a coordenadora de Ação Social, Rita Governo, cada um deles tem um propósito muito específico. “O Refeitório Social presta apoio em refeições confecionadas a famílias que se encontram em vulnerabilidade socioeconómica, o Centro de Convívio funciona como um espaço de desenvolvimento ao longo da vida para os nossos sócios acima dos 55 anos, com diferentes tipos de atividades, e o Serviço de Apoio Domiciliário presta cuidados na habitação daqueles que já não conseguem satisfazer as suas atividades de vida diárias”, explica.

Todos os dias estes serviços vão para lá daquilo que são os objetivos mais evidentes. Rita Governo recorda que no Centro de Convívio “chega a prestar-se apoio de acompanhamento médico a pessoas que estão isoladas, que vivem sozinhas e que não conseguem ir sozinhas fazer um exame ou ir a uma consulta”. Coisas tão simples como levantar dinheiro, tratar de serviços, meter o IRS ou ir ao banco muitas vezes têm o apoio da equipa d’A Voz do Operário. O mesmo acontece no Serviço de Apoio Domiciliário. “O que acontece dentro da casa de uma pessoa que vive isolada também ultrapassa, todos os dias, aquilo que são os serviços que estão contratados, portanto, até podes ter uma pessoa a quem contratualmente serves alimentação e ajudas com a sua higiene pessoal mas, quando lá vais, ajudas a tratar de serviços da vida, como pagar uma conta da luz, como ajudar na organização da medicação, ajudar a ler cartas de pessoas que não sabem ler”, descreve. “No Refeitório Social já ensinei uma pessoa a contar dinheiro, por exemplo, para não ser enganada”.

Para Rita Governo, a experiência é muito rica para todos e sublinha o lado mais relacional, no sentido de comunidade que estas pessoas encontram n’A Voz do Operário. “Sejam utentes do Refeitório Social que desenvolveram redes de apoio entre si e que se conheceram aqui, sejam sócios nossos que frequentam o Centro de Convívio e cuja relação passou a existir para além d’A Voz do Operário, assumindo-se como recursos de uns para os outros no seu dia-a-dia e fora daqui. Ou seja, o papel que nós assumimos, mais do que funcional e mais do que os objetivos mais expetáveis dos serviços que temos, eles superam-se todos os dias em coisas que não seriam da nossa competência”, destaca referindo que isso distingue a instituição de muitas outras. “Quando alguém nos pede alguma coisa, ou quando alguma necessidade surge, que não se encaixa necessariamente naquilo que é a nossa função, nós não fechamos a porta e não dizemos ‘eu não tenho nada a ver com isso’”, explica. “Mesmo que nós não consigamos efetivamente prestar essa ajuda, ninguém vai embora sem que tenha sido encaminhado para algum sítio que possa responder a isso”.

Artigos Relacionados