Os 80 anos de “ANIKI BOBÓ”: a infância como lugar do terror, culpa, desejo e coragem
A 11 de Janeiro assinalaram-se os oitenta anos da estreia no Porto de “Aniki Bóbó”, primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira. O filme tinha estreado em Lisboa três semanas antes, mas o marco seria a projecção na cidade que lhe serviu de suporte para falar sobre os meninos da foz do Douro – que transversalmente eram também as crianças que na época brincavam nas margens do Tejo, algumas com situações económicas e sociais difíceis.
“Aniki-Bóbó” é uma adaptação livre de um conto de Rodrigues de Freitas, “Os Meninos Milionários”, e tem como centro narrativo um grupo de crianças portuenses. Por trás da rebeldia e brincadeiras próprias da idade, Manoel de Oliveira dramatiza, através destes miúdos, emoções do mundo adulto. Aniki-Bóbó não é um filme sobre crianças e para crianças, mas sobre adultos no estado de criança.
Carlitos está apaixonado por Teresinha, esta está de olho nele e em Eduardinho; a rapariga parece ter uma perversidade e sentido do desejo inocentes. Nesta entrada da vida e no amor, ambos os rapazes rivalizam pela rapariga, que parece gostar do jogo de sedução. Eduardo mostra-lhe os músculos como fazem os homens grandes. Por seu turno, Carlitos rouba a boneca que Teresinha venerou na montra da loja.
Os adultos parecem legados para segundo plano. Só vemos a mãe de Carlitos no começo do filme, ralhando com o filho. Porém eles estão lá, ligados à austeridade: o professor é duro e castigador, o dono da loja mesquinho e injusto. Mas mesmo estes comportamentos mudam na terceira parte, quando professor e dono da loja ganham outra postura face aos miúdos.
A cidade, o medo e a noite das crianças
O Porto era já a “cidade cinematográfica” de Manoel de Oliveira. Interessava-lhe que a história destas crianças fosse atravessada pelo quotidiano das gentes da foz do Douro, pessoas que habitavam uma cidade diferente daquela que hoje conhecemos. Além dos miúdos que se atiram ao rio e constroem papagaios com folhas de papel vegetal, vemos homens a cantar nas ruas, mulheres à janela com trajes da altura, peixeiras a circular. Manoel de Oliveira não torna as aventuras destes petizes encantatórias. “Aniki Bóbó” fala sobre a consciência do bem e do mal, sobre o desejo, a culpa, o medo, também as dificuldades económicas de miúdos que andam à noite sozinhos pelas ruas. Temas que sobressaem com o roubo da boneca, para a qual nem Carlitos nem o melhor amigo tinham dinheiro para a comprar. Numa noite, Carlitos sobe ao telhado para a levar à rapariga; é também durante as brincadeiras nocturnas com os outros rapazes que se sente acusado de ser ladrão. O realizador revela esse mau estar interior da criança através do jogo entre luz e sombras e do percurso labiríntico que o protagonista faz pelas ruelas vazias da cidade. Ninguém o acusa, mas o peso que sente está no seu olhar aterrador que o rival Eduardinho lhe diz que será ladrão. O realizador referiu que procurou “sugerir o medo da noite e do desconhecido, a atracção da vida que palpita em todas as coisas à nossa volta, contrastando com a monotonia do que é fechado, limitado por paredes, pela força ou pelas convenções. (“Cine-Clube do Porto”, Dezembro de 1954)
A culpa e o tormento de Carlitos são agudizados por um pesadelo, e pela consequente tentativa fuga num barco de marinheiros. Nunca até então o Cinema Português falara da infância como um lugar desconhecido e assustador, em que os actos, mesmo os mais inocentes, podem ter consequências irreversíveis.
Em “Aniki Bóbó”, Manoel de Oliveira experimenta a luz de forma expressionista, recorre a vários movimentos de câmara, uma montagem ritmada e à superposição de imagens; sem deixar de ter representações naturalistas e humoradas, jogos de linguagem e trocadilhos, aproximando-se, desse modo, do cinema dos anos 40. Estamos perante um cineasta em busca do seu estilo, diferente daquele que posteriormente conhecemos. No entanto, o tema dos “amores frustrados” motivo central na sua filmografia começa aqui a ser esboçado com toda a destreza e poesia.
Disse ainda Oliveira sobre o filme: “Quando muito em Aniki-Bóbó, intencionalmente, mas muito ao de leve, pretendi sugerir uma mensagem de amor e compreensão ao semelhante, como advertência a uma sociedade que luta e se desespera em injustiças.” (“Cine-Clube do Porto”, Dezembro de 1954) Uma obra filmada durante a II Guerra Mundial, de uma grande profundidade temática, que nos faz descobrir o “Porto da minha Infância” (que o cineasta realizou/aprofundou anos mais tarde) como uma fábula, em que o medo e o terror jogam mano-a-mano com a fantasia e a coragem.