Voz

Regresso à escola

Uma Escola, Um Lugar

Entre o momento em que estas linhas são escritas e a sua leitura editada no jornal d’ A Voz do Operário, terá passado menos de um instante. Assim sendo, propomo-nos a escrever aquilo a que alguns chamariam de “um texto arriscado”. Arriscado porque discorremos sobre uma viagem que está, em grande medida, a começar, com a absoluta convicção do porto seguro aonde iremos chegar, mesmo que ainda nos falte passar pelas mais duras tempestades.

Consideramos certamente pertinente falar, nesta fase, daquilo a que chamamos, nas escolas, de “adaptações”. Este é o período que normalmente se inicia nos primeiros dias de Setembro e que se caracteriza pela chegada de novos membros a cada comunidade educativa e adaptações a novas valências educativas. Sabemos que há um potencial risco ao falar-se sobre o futuro mas o risco aqui é menor do que se poderá pensar. Chamemos aquilo que nos guia, para já, de convicção.

Sobre as adaptações, existem várias coisas que a experiência nos dá como absolutamente certas e que reforçam o nosso estado de espírito. Quando os meses de setembro e outubro tiverem passado, foram enxutos em papel litros de lágrimas, apaziguadas horas de soluços e suspiros, abraçadas e aconchegadas odisseias de sonos curtos e inquietos, adiada vezes sem conta a morte das saudades mais infinitas e opressoras. Repetiu-se, literalmente, dezenas de vezes, o mais profundo medo em deixar e ser deixado, obliterado pelo mais feliz alívio do reencontro. Vinte, trinta vezes foram muito poucas para uns, as suficientes para outros. A angústia de quem deixou nas mãos de outros o futuro das suas vidas, enquanto espera pela hora de voltar a ser colo do que de mais precioso se tem, estará quase extinta e vai dando espaço à confiança de saber que o mundo, afinal, não terminou e que há mais coragem e resistência no coração do que se imaginou.

Por essa altura a palavra obrigado foi tantas vezes dita como as palavras bom diaaté amanhãpai ou mãe. Porque o sítio onde tudo isto se vive, será cada vez mais um lugar, tal como Marc Augé o definiu. Porque todas as escolas, ainda que começando por ser não-lugares, têm de ser lugares.

Aceitemos que todas as escolas começam por ser espaços alheios ao conhecimento da generalidade das pessoas e não carregam em si significado suficiente para serem considerados lugares. A questão que se coloca é qual o tempo que os adultos das escolas estão dispostos a deixar passar para que a criança veja na sua escola, um lugar – o seu lugar.

Muitas das crianças mais pequenas da Voz do Operário – e arriscamos a dizer, alguns adultos – mesmo enquanto estas linhas são lidas, não o sabem ainda, mas a sua escola já é o seu lugar. Elas poderão ainda não acreditar, mas desde que, pela primeira vez, os adultos da Voz do Operário assumiram responsabilidades educativas sobre os seus percursos educativos, deixaram de ser anónimas na escola.

No primeiro dia em que uma criança entra, pela primeira vez, numa das nossas escolas, já horas de partilha entre adultos se passaram. Visitas, entrevistas, reuniões, conversas, para se saber tudo e um par de botas, com o intuito de tornar cada espaço educativo, no lugar de cada um, para ser o lugar de todos.

Ainda assim, não ser anónimo não implica estar, desde o primeiro momento, feliz. Para a maioria das crianças e adultos, é precisamente a descoberta da escola enquanto lugar, que vence a angústia que caracteriza os primeiros tempos. E é porque cada criança tem já o seu lugar que é justo e merecido um devido esclarecimento.

A Voz do Operário não é uma escola perfeita. Mas é um lugar pejado de muitos dos mais dedicados trabalhadores e trabalhadoras que qualquer lugar poderá ambicionar. Pessoas que se dedicam por inteiro a fazer do dia de cada criança, o melhor dia que já viveram, mesmo num dos piores momentos das suas vidas. Pessoas que se adaptam a quem chega, independentemente de onde venha e da história que carregue, com a mais genuína disponibilidade de aconchegar o caminho que, em conjunto, irá ser percorrido.

Todos os anos sem excepção, este movimento de adaptação é feito por adultos que escolheram dedicar a sua força de trabalho às nossas escolas, para transformar o mundo dos miúdos num lugar melhor. É por isso que podemos escrever sobre o futuro, sem medo. Poucos riscos se correm. Porque a confiança de hoje é forjada sobre a história que construímos ontem e sob o céu que definimos para amanhã.

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