Cultura

José Dias Coelho

O mundo a transformar: mote ou resposta

No dia 19 de Dezembro de 2021 cumpriram-se 60 anos do assassinato de José Dias Coelho. De tantas mortes levadas a cabo pelo fascismo durante os seus longos e sombrios 48 anos, esta foi particularmente revoltante. O crime consternou todos os que dele souberam, pela violência do ato e frieza dos assassinos, sendo um dos pontos mais baixos da história da ditadura. Passou quase impune, mas chocou e comoveu muitos, também porque José Dias Coelho era conhecido quer na sua qualidade de funcionário do Partido Comunista, quer enquanto artista plástico.

Na pessoa de José Dias Coelho, as dimensões de artista e de militante coexistiram desde cedo na sua vida. Contudo, houve um dia em que o artista que lutava contra o fascismo abandonou a perspetiva de desenvolver – em jeito de trabalho – a sua arte e mergulhou na clandestinidade, abraçando tarefas de grande responsabilidade, determinantes para a Revolução de Abril. O artista não desapareceu nesse dia, mas foi severamente penalizado em prol de um combate que permitiria dar o passo maior para a libertação de um povo de trabalhadores, dentre os quais, artistas. 

Para quem faz arte e molda a música, as palavras ou o barro, interromper a criação pode ser violento. Às ideias não lhes é permitido seguir o seu curso natural e culminar em obra. A carreira artística de Dias Coelho, que já vinha sendo intermitente, foi efetivamente sacrificada com a sua passagem à clandestinidade. Ainda assim, reconhecemos-lhe gravuras e outros desenhos que foi fazendo para a imprensa clandestina e que em muito elevaram a qualidade destas publicações. O seu talento – termo que aqui usamos para definir sensibilidade e inclinação aliadas à educação e ao trabalho – teve corpo e expressão dentro dos limites da sua vida dedicada à luta contra o fascismo. O artista teve um percurso, diferente talvez do da maioria dos seus contemporâneos, e que foi definitivamente terminado com a sua morte precoce. Mas a arte de José Dias Coelho não deixou a desejar e não poderia ter sido de outra forma, porque a sua vida também não.

Da mesma forma que um artista não pode deixar de o ser sendo privado das suas ferramentas de trabalho, também um revolucionário não deixará de o ser se se dedicar à sua atividade artística. Num Portugal libertado do fascismo, a arte de Dias Coelho seria sempre sobre os sujeitos que lhe eram caros, o mundo que o rodeava e as pessoas que o habitam. Portugal, porém, não era livre durante a sua vida. José Dias Coelho escolheu dedicar-se à luta antifascista de forma inteira, porque ainda que isso implicasse silenciar o artista em si, permitiria que tantos outros se emancipassem.

A luta para a qual Dias Coelho deu a vida levou a que fosse dado um passo determinante na democratização da produção e fruição culturais. Essa luta não está terminada. O ofício de artista, nos nossos dias, continua sujeito a regras de mercado e de estética que passam ao lado da esmagadora maioria do povo, e está não só reservado a uma elite como não habita sequer o sonho da maioria dos que, ainda assim, vão criando e produzindo arte. Tímida e desgarradamente, porque há contas para pagar, comida para pôr na mesa e um sem número de constrangimentos que, numa sociedade realmente livre, não se colocariam.

É com esse mundo livre, porém, que a arte nos permite sonhar e José Dias Coelho, artista de olhar ávido, curioso, quase pueril e sempre deslumbrado, com o seu exemplo humano, comprova que o sonho, a luta e a vida são indissociáveis. Que a criação artística não está desligada do contexto que habita, mas que também ela tem o poder de mover montanhas. José Dias Coelho escreveu “Em toda a parte há / um pedaço de mim / que se quer dar”. Mote ou resposta, a verdade é que em toda a parte há um pedaço de mundo a transformar.

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