Cultura

Música

Georges Brassens: um labirinto de canções para quem se quer encontrar

Em Outubro passaram 100 anos do nascimento de Brassens. Viveu apenas seis décadas e morreu também num mês de Outubro. Nascer e morrer em datas redondas é uma coincidência harmoniosa, uma ordem que se encontra numa fantástica e tumultuosa vida, espelho das suas composições.

Do panteão dos cantores franceses do século XX não será dos mais conhecidos em Portugal. Os seus temas não seriam dos mais apelativos para a rádio. A beleza da musicalidade de Brassens não advém de intrincados arranjos, mas da forma como a palavra se torna música e como a música serve a palavra. O ponto onde se encontra a ideia com o tempo da valsa, o momento em que as sílabas se encaixam na marcha a galope, é onde temos a certeza de estar perante um artista genial.

Depois de ouvir, lê-lo é novamente uma experiência intensa. Mesmo para quem domine a língua francesa, é um trabalho árduo entender cada subtil vocábulo, cada liberdade dialetal. Interpretar os seus quadros alegóricos é igualmente desafiante e estimulante. As estórias de cada canção dão uma vida vibrante aos protagonistas, sejam mais festivas ou melancólicas. Les copains d’abord é um hino à amizade e camaradagem; Chanson pour l’Auvergnat, uma valsa a escutar com lenço à mão, apresenta três personagens generosas a quem se manifesta uma sentida gratidão. Muitas vezes, uma pequena situação anedótica desdobra-se numa transposição para abordagem de questões políticas, como em Le Gorille, que parece ser sobre um animal que saiu da jaula e procura um humano para copular, mas que na verdade possui uma forte mensagem contra a pena capital.

Brassens é reconhecido por esta crítica social com que impregnou alguns dos seus temas, assim como pela forma como se posicionava, ainda que de forma fluida, na política – antes das canções, escrevia regularmente para publicações anarquistas. Mas mais que letras panfletárias, o que escutamos – ora evidente, ora subtil – é um retrato, um olhar comprometido com a humanidade. No tema La complainte des filles de joie, Brassens apresenta-nos a realidade da prostituição sem romantismos ou vitimizações, exortando ao respeito pelas mulheres prostituídas. E da mesma forma que toma partido pelos mais vulneráveis, também não deixa de afirmar o seu direito a não querer lidar selectivamente com a realidade: “Não faço mal a ninguém ao seguir o meu caminho de bom rapaz, ao ignorar o som dos clarins, ao deixar correr os ladrões de maçãs”, como ouvimos em La Mauvaise Réputation.
A liberdade de pensar, escrever e sentir será talvez o legado mais significativo da sua obra. Quando se apresentava ao vivo, chocava com as suas letras um público conservador. Era capaz de descrever, por exemplo, como em Fernande, a forma como se masturbava. Alternou entre o erótico e o satírico, o cómico, o pornográfico, o romântico e o militante como só quem tem uma sede de viver e uma honestidade para com quem lhe bebe as palavras é capaz. Quem assim escreve tem, em última análise, um profundo amor pela vida em todas as suas dimensões.

Amor, um ingrediente nem sempre principal mas com que sempre temperava as canções. O amor em Brassens continua a ser exemplo – quer-se livre, sem as amarras do casamento como em La non-demande en mariage, sem as expectativas dos papéis da sociedade – Je me suis fait tout petit é um deleite para os entusiastas de BDSM. O amor pode querer-se também efémero como em Putain de toi, platónico como em Les passantes ou só apenas como uma lembrança do que podia ter sido como em Coupidon s’en fout

Ouvir Brassens é mergulhar em palavras que a cada ano que passa, ganham novas leituras. Escrever como Brassens (ou algo assim, como alguns de nós por vezes sonham), é um acto de coragem e resistência.

Artigos Relacionados