Entrevista

Música

Contra as distopias, sonhar um futuro melhor

Nega é o nome artístico de Ricardo Romero, um dos mais conhecidos rappers do outro lado da fronteira. É MC no grupo Los Chikos del Maiz, ao lado de Toni Mejía e do Dj Plan B. Alvos de ameaças da extrema-direita, já viram vários concertos proibidos pelas autoridades espanholas. As letras são verdadeiros rastilhos de pólvora, um grito contra o sistema capitalista e o fascismo. É um verdadeiro comanche do rap antifascista que defende que precisamos de sonhar futuros possíveis. De passeio por Lisboa e de visita à Voz do Operário, Nega anuncia que estão a preparar um quarto álbum e revela em exclusivo para este jornal o nome do novo trabalho.

Como chegas ao mundo do rap?

Bom, chego pelo mundo do graffiti e, ao contrário de outras cidades, como Madrid ou Barcelona, o graffiti chegou antes a Valência, e as pessoas do mundo do graffiti ouviam rap. E depois, bom, começámos a pintar por aí pela cidade. Começaram a aparecer grupos como 7 Notas, 7 Colores, Club de los Poetas Violentos [CPV] e foi assim…

Qual era o teu tag nas paredes?

Nega, sempre Nega.

Ganhas consciência política nesse contexto?

Claro, também com o punk, os centros sociais…

E através da família.

Sim, claro, o meu pai era comunista, sindicalista, mas às vezes quando és adolescente se não te metes num determinado círculo e em determinados ambientes por muito que o teu pai te diga…Mas, sim, havia nos meados dos anos 90 muita efervescência dos centros sociais ocupados e também bandas como Maniática, El Oso Yonki. Para além disso, deixavam-nos pintar nos centros sociais e, claro, ias-te deixando impregnar pelo ambiente político. Claro, quando começam a sair os primeiros grupos de rap, ao contrário dos que há agora, como esta merda do trap, tinham consciência antifascista. Nos anos 90, era habitual confrontos com nazis, e a pouco e pouco fui tendo mais consciência, tu vias punks e grupos como os CPV, que tinham árabes e negros, que se pegavam ao murro com fascistas e, claro, quando tens 16 anos isso tem um grande impacto. Eu pensava: eu quero fazer isto.

Como começou tudo?

Eu estava no 13 Pasos, que foi o primeiro grupo que criámos em Valência, e o Toni [Mejías] vinha do La Nota Más Alta, um grupo posterior. Nós os dois coincidíamos ao nível de referências cinematográficas e políticas, o Che [Guevara], o Fidel [Castro]…Um dia estávamos parados e decidimos criar algo juntos, sem muitas pretensões, fizemos uma maquete e mandámo-la a discográficas. Tudo isto também coincidiu com o auge dos fóruns na internet e a verdade é que a maquete teve sucesso. Depois chegaram as redes sociais e fomos ao palco das juventudes na festa do Partido Comunista de Espanha [PCE] em 2005 ou 2006. Este ano voltámos a tocar na festa do PCE, no centenário deste partido, e também estava Silvio Rodríguez.

E porquê o nome Los Chikos del Maiz?

Porque soava bem, e depois há o conto de Stephen King, Children of the Corn, e o filme [em português, Os Filhos da Terra], que é péssimo. Nós somos da periferia de Valência, da cintura vermelha industrial, e sempre nos sentimos um pouco afastados em relação a quem vivia na cidade. E na novela, as crianças revoltam-se contra os adultos e ocorre num ambiente rural. Bom, a verdade é que soava bem, apesar de agora estar um bocado desactualizado porque já temos 40 anos.

Los Chikos del Maiz em Maiorca.

As vossas letras estão cheias de referências políticas, cinematográficas, literárias, musicais, entre outras.

Sim, mas nunca quisemos vestir a pele de educadores ou algo assim. Foi de uma forma bastante natural.

E são letras muito visuais. O rap sempre foi muito visual. 

Claro, podes dizer muitas coisas num espaço muito curto de tempo. Com o rap podes dizer muitas coisas. Um concerto de rock dura uma folha, só uma canção nossa gasta uma folha. A quantidade de referências, de jogos de palavras, de piscares de olhos a outros temas…O que se passa é que, claro, com o passar de anos vais acumulando maquetes, discos e tal e chega a um momento em que tens de escolher o material porque a memória não dá para tudo. Agora queremos fazer um concerto no 15º aniversário do grupo no Palácio dos Desportos de Madrid e vamos revisitar toda a carreira e vou ter de recordar canções mais antigas e nem quero imaginar como vou ter de fazer…

Um concerto marcante, portanto.

Sim, já tinha sido desmarcado por causa da pandemia e esperamos que agora possa ser um concerto com toda a gente de pé porque isto foi terrível. 

Esta manhã, quando acordaste em Lisboa, publicaste nas redes sociais um sonho que tiveste e que vamos transcrever para os nossos leitores. Sonhar é importante?

Transcrição da publicação: “Hoje sonhei que ocupávamos um edifício no Chiado e criavamos uma comunidade de artistas que governada com punho de ferro em que a única regra era “limpa e esfrega a casa de banho ou baza para a tua casa, hippie de merda”. E ali estivemos, o tempo todo a compor, a criar, com um cineforum, com feiras de discos que organizavamos regularmente, trocando fanzines e livros. Havia também um estúdio de tatuagens, claro. E um estúdio de gravação. E uma ágora pública onde debatiamos as próximas acções, como por exemplo arrasar as instalações da Fnac e de outros templos da perversão da cultura. Quando a polícia já nos tem cercados e está prestes a capturar-nos, o Partido Comunista Português ganha as eleições e somos absolvidos de todas as acusações, claro. Acolhemos refugiados espanhóis em fuga da presença do VOX nos ministérios, especificamente da Cultura e Igualdade. Um ano mais tarde, invadimos Espanha e libertámo-la do jugo fascista. Depois acordei, olhei pela janela e vi a merda da H&M. E lembrei-me como é repugnante visitar outros países, com outra língua e outra cultura e ver a mesma merda de cadeias comerciais de merda”.

[Risos] Bom, era um conto, uma utopia mas eu creio que há que reivindicar um pouco a utopia. Às vezes, parece que perdemos um pouco a capacidade de sonhar. Somos incapazes de sonhar futuros e se os que militamos na esquerda não somos capazes de imaginar um futuro possível porque tudo é uma merda, porque tudo é terrível, porque está tudo desintegrado. Porque se desmontou tudo o que era o tecido operário, cultural…mas, porra, se não acreditarmos nós próprios quem é que vai acreditar? O vizinho que vê a Telecinco [canal de televisão] todas as tardes e que está alienado e que passa o dia entre o trabalho e o bar?

Em Espanha, há agora certas autoras e autores que estão a reivindicar isso mesmo como Layla Martínez. Essa capacidade de sonhar futuros possíveis. E é bom voltarmos a acreditar em utopias porque tudo o que nos chega são distopias. Os produtos culturais que nos chegam são isso. Agora saiu uma nova série na Netflix que é uma distopia em que há que lutar uns contra os outros…Ou seja, vamos imaginar futuros em que as coisas sejam melhores, em que haja solidariedade.

Achas que estas distopias servem para distanciar-nos…

…sim, para sustentar o sistema. Para além disso, nos últimos tempos há uma quantidade brutal deste tipo de produtos culturais. E agora com a pandemia parece que se pôs o foco nisso. Que as pessoas vão cada uma por si, que são egoistas, mas, claro, depois de 25 anos de neoliberalismo quando chega uma pandemia não esperes que as pessoas apresentem a sua melhor cara. Se tivessemos recebido outra educação e se imaginassemos outro futuro ou outra sociedade…Mas também houve bons comportamentos. Houve ajuda entre vizinhos, reconheceu-se o trabalho dos trabalhadores da saúde, muitos jovens passaram a dar apoio a idosos que não conseguiam sair de casa. O problema é que o que se dá destaque é a tudo o que é mau. Atrevamo-nos a sonhar e a pensar em futuros possíveis.

É duríssimo o que digo mas nós até nos sentimos de alguma forma privilegiados por termos tempo para ler, para estudar, para reunirmos. Estamos em tempos em que a militância quase que se converteu num privilégio. Muita gente tem de trabalhar 14 horas ao dia. Não têm força nem tempo. A dinâmica neoliberal do individualismo já está estabelecida. É que não se trata só de ganhar eleições. Como desmontas um sistema cultural que te diz que deves pensar em ti, que votar chega e que depois pensem por ti? É que nem eleitoralmente há participação. Cerca de 35% não vota e não são ricos. Eu não digo que as instituições e as eleições sejam a solução mas até isto é um drama.

Anda tudo demasiado depressa. Vivemos na sociedade do imediato, na sociedade Glovo [aplicação semelhante à Uber]. Quero uma pizza e tenho-a em cinco minutos.

E isso intensificou-se com a pandemia.

Sim, outra coisa que acontece com esta coisa de pensar futuros é que quando há vitórias não sabemos saboreá-las e valorizá-las. Há pouco tempo, os operários da Tubacex [produção de tubagens] depois de uma greve indefinida de quase oito meses ganharam. Também a luta do táxi contra a Uber em Barcelona. E às vezes vai tudo tão depressa, hoje há uma polémica e no dia seguinte essa polémica parece que foi há mil anos e já estamos com outro tema. Por isso é que acho que temos de saborear, valorizar e dar a conhecer as nossas vitórias. Temos de ter tempo para assimilar as vitórias e dizer ‘olha, as greves funcionam’.

Há um grupo em Portugal que se chama C.O.M.A. e que tem uma letra dos anos 2000 em que se canta “a respiração é mais lenta que as telecomunicações”. A internet ainda não estava no auge e já se sentia a velocidade.

A nossa esquerda dá mais importância às redes sociais do que têm na verdade. As redes sociais são importantes para difundir, não para debater. Debater com a direita é inútil. Eles são mais, têm mais voz, compram páginas, compram seguidores. E a maioria das pessoas da rua não participa nisso. Para além disso, há a questão da saúde mental. Não sei como está aqui mas em Espanha, com a pandemia, as pessoas estão muito afectadas. Depois, não há psicólogos e as redes sociais são um foco de problemas de saúde mental. Porque geram ansiedade, porque geram dependência. Às vezes, achamos que o Twitter é uma ágora pública. Não, não, é uma empresa privada, norte-americana.

Fotograma de Toni Mejía e Nega no videoclip da canção antifascista No Pasarán.

E há quem se ache activista pelo simples facto de escrever coisas no Twitter.

Essa é outra. Aí podíamos falar de tanta merda…Estas pessoas não conhecem os vizinhos, as associações do bairro em que vivem. E isto já dizia o Walter Benjamin há um século. Temos de ir mais devagar, meter o pé no travão. Temos de saborear a vida porque o que temos agora não é vida. É um cúmulo de situações super rápidas em que não temos tempo para pensar e para debater. Estamos a perder a vida nestas auto-estradas da informação e isso tem tradução na forma como nos relacionamos com as pessoas. Tem tradução nas nossas relações amorosas, com os amigos.

As pessoas deixaram de se encontrar na rua. Com a pandemia, em Valência, as restrições foram muito duras e aconteceu algo muito curioso. Houve um momento em que podias sair mas os cafés estavam fechados e a única coisa que podias fazer era passear. Era bonito porque combinava com os amigos para passear. E creio que nisso reforçámos vínculos com amigos. Isto porque dantes combinavas alguma coisa e tinhas de consumir. Então era como ‘raios, nós tínhamos perdido este hábito’.

Em Espanha, vocês foram censurados várias vezes. Sentes que o franquismo nunca se foi embora por completo?

É frustrante. São já tantos anos e já passou tanto tempo da transição…O país não é uma democracia completa. Não vou dizer que é uma ditadura porque não é uma ditadura mas não é uma democracia completa comparando com os países vizinhos. Não é Itália, não é Portugal e não é França. Não houve uma ruptura com o regime. Hoje deitamo-nos em ditadura e no dia seguinte acordamos democratas como se não tivesse acontecido nada. E estamos a falar de gente com muito poder. Gente instalada na justiça, na polícia, no exército…Por exemplo, o Tribunal de Ordem Pública [antigo tribunal fascista semelhante aos tribunais plenários em Portugal] que era um órgão de repressão brutal está no mesmo edifício da Audiência Nacional [tribunal actual para crimes políticos e de terrorismo]. Só mudaram a tabuleta. Também estão os grandes meios de comunicação e, claro, as grandes fortunas que enriqueceram graças à mão de obra escrava de presos republicanos durante o franquismo.

Temos censura, temos um rapper na prisão, o Pablo Hásel, temos as barbaridades que se fizeram no País Basco e na Catalunha, autênticas barbáries próprias de ditaduras latino-americanas dos anos 70, fecharam-se jornais, censuraram-se grupos. A nós, frequentemente, se o PP diz que não tocamos em tal localidade, não tocamos. Em Espanha, temos um ditado em que dizemos que nas famílias ricas o filho mais velho é posto a dirigir a empresa e o filho idiota metem-no no partido. E o filho idiota é o que facilita todos os negócios da empresa através do partido e da política. E idiotas temos muitos: Rajoy, Casado, Ayuso…

Uma das coisas que nos surpreende é não haver em Espanha um museu como o da Resistência e Liberdade, no Aljube, em Lisboa, que visitaste hoje. 

Há pouco tempo, tiraram Franco [do Vale dos Caídos] e olha o escândalo que foi. Franco estava enterrado sobre uma das maiores valas comuns do mundo com cadáveres republicanos. Quando se constrói um monumento às Brigadas Internacionais ou aos republicanos, dura uma semana. Vandalizam-no logo com deputados do Vox a posar ao lado. É um apelo à vandalização dos monumentos anti-franquistas. Construíram ao longo de anos a ideia de que isto foi uma guerra entre irmãos, que não houve bons nem maus. Como é que não havia bons nem maus se havia um movimento em Espanha apoiado por Hitler e Mussolini? Fizeram-se autênticas barbaridades. O que se fez em Badajoz, o que se fez em Málaga…’Ah, porque os comunistas mataram dois padres’, dizem alguns. Só em Badajoz, Manolete, o famoso toureiro, toreava presos republicanos na praça de touros. Foi uma carnificina. Havia rios de sangue. Ah, porque agora os republicanos mataram uma freira querem apresentar isto como uma guerra entre iguais. Pela primeira vez na história, a aviação militar, sobretudo nazi, bombardeou cidades, objectivos civis. Espanha foi um campo de experiências do fascismo para a Segunda Guerra Mundial e durante anos venderam-nos esta equidistância de que foi uma luta entre irmãos. Mas que irmãos? Os fascistas não são meus irmãos. E depois tens um genocida [Franco] que tem um mausoléu de merda e é todo um escândalo quando o tiram de lá. Imagina que o Hitler estava enterrado num mausoléu e que lhe faziam homenagens todos os anos com o braço estendido. Era precisamente isto que acontecia no Vale dos Caídos. Uff, já me estou a exaltar…Ainda por cima estou no estrangeiro e isto dá-me ainda mais vergonha [risos].

E projectos futuros do grupo?

Em 2019, sacámos um disco [Comancheria] e fizemos uma digressão por todo o Estado e esperávamos pelo Verão, pelos festivais, e de repente chegou isto. Mas agora parece que tudo o que aconteceu antes da pandemia foi há mil anos. Por isso, estamos acelerados e, bom, eu não disse isto ainda em lado nenhum…mas vamos lançar o quarto álbum da nossa carreira. Queremos ver como funciona, queremos meter mais instrumentos reais com banda, bateria, baixo.

Último álbum de Los Chikos del Maiz.

E vão ter convidados?

Menos, no outro tivemos muitos convidados mas neste menos. Isto vai ser um trabalho mais pequeno mas também não vos quero contar porque ainda estamos a construir tudo isto. Mas o que, sim, vos vou dizer é como se vai chamar. Um exclusivo para A Voz do Operário [risos]. Vai chamar-se Yes Future. 

Porquê esse nome?

Por causa do lema punk No Future. Tem tudo a ver com aquilo de que falávamos antes de imaginar utopias. Se lutamos, há futuro, se ficarmos de braços cruzados, vamos continuar na merda. O objectivo é dar um pouco a volta ao lema punk ‘no future’, muito distópico e nihilista, muito individualista e depressivo. E para depressiva já temos a realidade. Por isso, Yes Future.

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