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Aeroporto de Lisboa, a história dos eternos retornos

Instalar um aeroporto em Lisboa seria sempre um problema de difícil resolução. Localizada no estuário de um rio de largo caudal, rodeada de solos férteis e, por isso mesmo, espaço de excelência para o desenvolvimento de ecossistemas ricos e diversos, a construção de um ponto de levantamento e aterrizagem de aviões, com todas as estruturas associadas, sistemas e vias de comunicação, abastecimento, apoio a passageiros, gerador imenso de desperdícios, consumidor gigantesco de materiais e energia, é um quebra-cabeças cuja resolução implica mexer numa miríade de equilíbrios que, seguramente, nenhuma autoridade gostaria de ter em mãos.

Não existe no caso de Lisboa uma localização que possa ser considerada boa e, portanto, a única solução que se pode considerar é aquela que balanceando aspectos positivos e negativos permita instalar um equipamento desta natureza e dimensão, com o menor número de danos possíveis. Se é que se pretende na realidade contar com uma infraestrutura deste tipo e parece haver a noção generalizada que sim.

Os primórdios do novo aeroporto – o primado das preocupações técnicas

O crescimento do transporte aéreo de passageiros era já reconhecido aquando da criação do Gabinete do Novo Aeroporto de Lisboa em 1969. Assim o Decreto-Lei n.º 48902 inscreve no seu conteúdo as seguintes linhas:

“Alguns anos depois de construído o actual Aeroporto de Lisboa, começou a operar-se no mundo inteiro uma evolução rapidamente progressiva da técnica da aviação, conduzindo este meio de transporte à função preponderante que hoje lhe cabe na vida da humanidade.

E assim aquele Aeroporto, construído em 1930, registou um movimento de 2900 passageiros em 1942, passando para 50000 em 1946 e 64000 em 1952, logo atingindo os 245000 em 1958.

Após a guerra, entre 1959 e 1967, o tráfego de passageiros passou de 428000 para 1422000, e estudos de previsão recentes, feitos por firmas especializadas na matéria, anunciam que atingirão os 4 milhões de passageiros em 1975 e talvez 8,5 milhões em 1980.

As várias adaptações realizadas no Aeroporto, como a preparação das pistas para os aviões a jacto e a adaptação das instalações para procurar atender ao crescente movimento de passageiros, nunca chegaram a satisfazer as necessidades, dado que a evolução do tráfego aéreo se tem processado num ritmo que muitas vezes ultrapassa as mais amplas previsões.”

Estas palavras não eram vãs. Na realidade o crescimento do número de passageiros nos últimos anos validou as previsões e até mostrou a tendência para um crescimento ainda mais acentuado. O relatório do INAC da evolução do transporte aéreo 1990-2009 indicava o crescimento do número de passageiros, passando de perto de 5 milhões de passageiros em 1990 para cerca de 13,3 milhões em 2009, e a PORDATA indica que o máximo foi atingido em 2019 com 31.184.594 milhões de passageiros, sendo que apenas a pandemia fez os números voltarem a valores do final dos anos noventa.

Pese que à época nenhumas considerações foram feitas, nem sobre o ambiente, nem sobre a qualidade de vida das populações. Não se considerou sobre poluição do ar, nem sobre ruído, sobre afectação de solos, degradação dos sistemas naturais ou perda de biodiversidade. Apenas foi reconhecida a necessidade de se encontrarem novas localizações, das quais ao tempo prevaleceram a Ota e o Rio Frio, com base em considerações do foro técnico. E, de entre estas duas, com o avanço da década de 70, a Ota veio a ganhar prevalência.

As decisões mais democráticas, ou nem sempre. Ou o caminho da Ota ao Campo de Tiro

A quase estagnação, ou na realidade um crescimento menos acentuado da utilização da Portela, de meados dos anos setenta até aos princípios dos anos 90, empurraram a tomada de decisão para mais tarde. Também a Revolução de Abril e a necessidade de ouvir a sensibilidade das populações, que não era tida em conta de nenhuma forma no decreto de 1969, impedia a implementação da orientação decorrente desse decreto.

Não obstante, esta orientação veio a ser repescada no final dos anos 90, e vários estudos, que retomaram e modernizaram os princípios orientadores da opção Ota, pareciam concorrer para sufragar esta solução, sendo inclusive incluída no Projecto a linha de caminhos-de-ferro em alta velocidade. A implementação do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) na Ota aparecia então como um facto tão consumado que, para o mesmo, foi desenvolvido um Plano Especial de Ordenamento do Território que suspendeu os diversos Planos de Ordenamento e que tinham dado azo a licenciamentos, mais ou menos claros, na zona que ficaria abrangida pelo Plano Especial.

Esta opção teria seguido adiante não fora a contestação levada a cabo, principalmente pelas populações e pelas Organizações Não Governamentais ligadas à protecção e defesa de valores ambientais e, diga-se a bem da verdade, de interesses mais inclinados para uma localização mais central no que concerne à proximidade dos grandes eixos de comunicação com a Espanha, e que apresentaram uma solução que se mostrou bastante mais equilibrada na mitigação dos vários impactes negativos, nomeadamente os impactes relacionados com o ruído – ao qual nem as limitações internacionais aos níveis produzidos pelos motores haviam dado resposta cabal – ou as relacionadas com a biodiversidade, mesmo que tenha de ser tido em conta a quantidade de sobreiros a abater.

Retrocesso nas decisões – A Portela mais Um

Não é segredo que a solução de um Aeroporto na margem sul do Tejo contou sempre com diversos tipos de oposição, desde um Ministro que publicamente declarou “jamais, jamais, jamais!”, até a diversos autarcas da zona ocidental de Lisboa, que promoveram soluções como Portela mais Tires, Portela mais Base aérea da Quinta do Marquês (Sintra), Portela mais Alverca, e, por fim, quando uma a uma estas soluções foram sendo descartadas Portela mais Montijo.

Na realidade a Base aérea n.º6 surgiu quando a ingerência da Troika nas políticas de desenvolvimento nacional, com a cumplicidade do Governo PSD/CDS, impôs um downsizing que a ter prosseguido teria reduzido o país a um mero protectorado de potências estrangeiras, e medrou quando se começou a instalar o mito do custo da construção de novas pistas, no quadro de uma concessão que privatizou a ANA (Aeroportos e Navegação Aérea) por cinquenta anos a uma empresa que demonstrou ter pouco, ou nenhum interesse, em investir nas infraestruturas nacionais e mais na exploração das já existentes, ou nas de muito baixo investimento.

Quando se esperaria que o Governo PS, que lhe sucedeu, revertesse estas opções, visando a implementação de uma política de transportes integrada, entre os vários meios, potenciando as infraestruturas existentes com as infraestruturas a construir, nos vários modos e em respeito pelas necessidades e aspirações das populações e dos valores ambientais, tal não aconteceu, verificando-se em vez disso a insistência por todos os meios na solução Portela, com todos os inconvenientes de poluição do ar e ruído e riscos de acidentes em Lisboa, e a aprovação de um Estudo de Impacte Ambiental que não tem em conta, entre outros, os impactes do ruído sobre uma vasta população.

Defendendo um projecto temerário, enfrentando Municípios, ongas e tribunais? Ou seguir um caminho diferente?

Perante as dificuldades decorrentes, nomeadamente das críticas das organizações cívicas e ambientais, e que se consubstanciaram em participações altamente críticas a este EIA durante o seu processo de avaliação, as autoridades governamentais ensaiaram uma notória fuga para frente, cujo avanço acabou por esbarrar também com o parecer negativo das Câmaras Municipais da Moita e do Seixal, e com elas a Associação dos Municípios de Setúbal.

Esta fuga consubstanciou-se numa tentativa de alterar a Lei, por forma a ultrapassar a negativa dos Municípios, processo no qual o Governo teve a anuência do PSD, cuja intervenção não é despicienda quando se faz uma análise de toda esta situação. Contudo, ao mesmo tempo, as Associações iniciaram passos para a impugnação pelos tribunais da Declaração de Impacte Ambiental, devido a considerarem a existência de inúmeros atropelos, inclusive legais, à emissão da mesma.

Perante a exposição das associações Almargem, ANP/WWF Portugal, A Rocha Portugal, FAPAS, GEOTA, LPN, SPEA e ZERO, o Ministério Público, em fins de Abril de 2021, reconhece a validade dos argumentos e conclui pela “invalidade do acto administrativo impugnado com fundamento em nulidade e ou anulabilidade”, dando razão à acção de anulação da DIA interposta.

Também o Tribunal Administrativo de Almada considerou em Setembro último, em sentença então proferida, que: “a escolha do local na Base Aérea do Montijo descura de modo evidente e manifesto os impactos ambientais, quer na fase de construção, quer na fase de exploração, nas áreas sensíveis legalmente protegidas, de importância nacional, comunitária e internacional, impactos esses que são, designadamente, a vasta destruição no local, na fase da construção e a sua afetação irremediável no futuro durante os cinquenta anos da fase de exploração, sem qualquer possibilidade de reconstituição ‘in natura’, desde que comece a fase de construção”. Porém não suspendeu o processo!

Neste quadro o resultado das eleições autárquicas do passado dia 26 de Setembro, tem um óbvio impacto no definitivo abandono ou no prosseguimento deste projecto, acção esta que roça a temeridade, em face até das tomadas de posição das autoridades judiciais. É evidente que, apesar de tudo, o enfraquecimento das maiorias municipais que, em nome do bem-estar, se opõem à instalação no Montijo daquilo que é, para todos os efeitos, um terminal da Portela, corroi os esforços das populações e associações contra a sua construção, mas também os esforços e a luta daqueles que lutam pela saída definitiva do Aeroporto da Portela, abrindo uma porta de saída à decisão que estaria aparentemente já tomada.

Temeridade será sempre, porque não só um equipamento destas características com semelhante localização, cedo vai trazer consequências às vidas das populações, como reproduzirá toda a situação da Portela na margem sul, duplicando um problema, que acabará por sair caro a médio prazo, a quem o defende, e que, a concretizar-se, apenas servirá o interesse do concessionário que procura obter o maior rendimento da sua concessão, com o mínimo de investimento, garantindo um nutrido retorno.

Por outro lado se se concretizar a sua travagem, a retoma da solução Campo de Tiro de Alcochete virá fazer correr alguma tinta, ainda que esta seja à partida uma solução melhor. Em todo o caso o retorno a ela carecerá sempre de uma Avaliação Ambiental Estratégica, que consagre de uma vez por todas, quando e como deve ser implementado e mais do que isso qual a forma em que se integra numa estratégia nacional de transportes e que papel e relevância nesta estratégia pode e deve desempenhar.

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