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Apostar na ferrovia não pode ser uma moda

Os partidos da política de direita (para quem anda mais distraído, são o PS, o PSD e o CDS) desenvolvem no governo uma política no essencial continua desde 1976, e marcada pelo processo de reconstrução do capitalismo monopolista em Portugal e submissão aos ditames da União Europeia.

Uma das vítimas desse processo foi a ferrovia nacional, apesar da extraordinária capacidade de resistência dos trabalhadores e dos utentes. Mas, dir-me-ão, agora já não é assim, e a ferrovia é a grande aposta deste governo. Sim, quem ouve falar o Governo nos últimos 6 anos pensa seguramente que vivemos num gigantesco estaleiro nacional, onde se multiplicam os investimentos na ferrovia e as fábricas de comboios. 

Os planos sucedem-se, o Portugal 2020, o PNI 2030, o Plano Costa e Silva, o PRR, o Plano Nacional Ferroviário (nestes 6 anos, nos anos imediatamente anteriores tínhamos tido o PET, o PETI, o PETI 3+), cada um anunciado com pompa e circunstância, com consultas públicas, anúncios de centenas de milhões, múltiplas conferências de imprensa e saudações de vitória dos autarcas, municípios e regiões abrangidos pela satisfação de alguma antiga reivindicação. Planos que se sucedem uns aos outros com miseráveis taxas de execução, criando excedentes orçamentais para ajudar a reduzir o défice, e uma pilha de problemas e de atrasos que se vão empurrando com a barriga e com mais promessas.

Um exemplo aqui às portas de Lisboa é a Linha do Oeste. Façam uma breve consulta na net e verão a quantidade de notícias geradas ao longo dos últimos anos. De cada vez que integrava um plano, de cada vez que avançava uma das várias fases do processo (decisão, lançamento do concurso, adjudicação, início e conclusão da obra)… do troço 1, reiniciando-se a dança para o troço 2 ficando a faltar os troços 3 e 4. Tenho a certeza que muitos leitores estarão convencidos que a electrificação já chegou à Figueira, ou está lá perto, quando na realidade chegou apenas… a Meleças. Em resultado disto, a linha continua sem comboios, sem horários dignos, sem electrificação, e claro, quase sem passageiros. 

Outro exemplo é a Linha de Cascais. De cada vez que há eleições surgem as promessas. Depois destas, o cancelamento das promessas. Faz já 11 anos que foi cancelado o concurso para a modernização da Linha de Cascais, e nessa altura já os comboios estavam velhos. O inenarrável Carreiras até já defendeu que a Linha fosse arrancada para a substituir por um eléctrico dito rápido (mas mais lento e menor que o comboio). O Governo anunciou agora a compra de 34 comboios para Cascais, usando palavras que só podem ter soado conhecidas aos ouvidos de quem acompanha as questões da ferrovia: «o maior investimento de sempre da CP em material circulante». E por uma razão, foi assim que foi apresentado por Ana Paula Vitorino o pacote de 2009, que também incluía a aquisição de comboios para Cascais… e foi cancelado depois das eleições legislativas desse ano.

Aliás, outra vertente onde a distância é quilométrica entre as palavras e os actos é na questão da construção de material circulante. É verdade que nestes seis anos voltámos a ouvir falar na construção de material circulante em Portugal. Mas os únicos dois concursos lançados nestes seis anos, para 14 unidades triplas para o Metro (7 comboios) e 22 comboios regionais para a CP foram lançados sem incluir essa condição, e numa forma (pequenas aquisições esporádicas) que dificulta qualquer possibilidade realista de alavancar a recuperação desta valência do nosso aparelho produtivo. E acabaram os dois concursos por ser ganhos por uma empresa Suíça que os vai construir em Espanha (onde a incorporação nacional é condição para se aspirar a ganhar qualquer encomenda). 

É que este Governo tem como principal, extraordinária e, muitas vezes, única qualidade, o facto de não ser o anterior governo PSD/CDS. Isso reflecte-se na ferrovia, por exemplo, no facto do anterior governo PSD/CDS ter afirmado nos tais planos que o transporte ferroviário de passageiros não era sequer importante, excluindo-o completamente dos investimentos, e este governo, pelo contrário, reconhecer a importância crescente do transporte público ferroviário.

Se juntos PS/PSD/CDS encerraram 1200 quilómetros de ferrovia em Portugal, encerraram a Sorefame, pulverizaram a CP e liquidaram essa valência do Aparelho Produtivo nacional, o facto de nos últimos 6 anos se ter parado com essa destruição pode criar uma ideia de profundo contraste. Mas estamos longe da ruptura que se exige, da efectiva inversão do caminho percorrido. A única reversão significativa – e com resultados positivos que ninguém contesta – foi a reintegração da EMEF na CP. Mas ainda esta semana vimos o MIH dizer que também defende o fim da estúpida unificação da REFER e das Estradas de Portugal na IP, para, na mesma entrevista, acabar a explicar porque não o vai fazer, apresentando uma daquelas justificações que só enganam quem quer ser enganado, e no fundo, mantendo o caminho de destruição de ambas as empresas.

Porque o problema é mesmo de fundo. O Governo celebrou o Ano Europeu do Transporte Ferroviário, mas essa comemoração destina-se a assinalar a entrada em vigor do quarto pacote ferroviário europeu, celebrando a sua submissão ao processo que materializa o projecto neoliberal e neocolonial da UE: onde os países «como Portugal» se endividam para investir em infraestruturas que depois colocam ao serviço dos «utentes» dessas infraestruturas (as multinacionais) que depois vendem serviços aos novos «clientes» (os antigos utentes do serviço público). 

Ora pode-se anunciar um belo arroz de marisco, mas se os ingredientes são umas salsichas, chucrute e pretzel, não se pode ficar surpreendido por sair um prato típico alemão. É assim que as mercadorias na ferrovia portuguesa são já asseguradas por uma multinacional Suíça, e a empresa ferroviária pública alemã, a DB, que já detém 30% da Barraqueiro, se prepara para assegurar a ligação em alta velocidade entre Braga e Faro substituindo a CP, e retirando-lhe o serviço mais rentável, o que obrigará o Estado a colocar mais 65 milhões anuais no financiamento da oferta regional.

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