A pandemia teve um forte impacto num dos principais setores económicos de Portugal. A atividade turística retrocedeu de forma brutal e fez ressentir um país muito dependente da visita de estrangeiros. Apesar dos efeitos desta retração, as forças políticas que se revezaram à frente dos sucessivos governos optam por não debater um modelo económico sustentado num aparelho produtivo menos volátil e mais qualificado.
O peso do turismo no PIB português é um dos mais elevados do mundo. Entre os 36 países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), Portugal apresentava, em 2016, uma maior percentagem do PIB resultante do setor do turismo, mais concretamente 12,5%, de acordo com dados da própria OCDE. Nesse ano, Portugal estava à frente de países como Espanha, México, França, Suécia, Áustria, Indonésia, Alemanha, África do Sul, Estados Unidos da América, Canadá, Dinamarca e Japão. Em 2018, Portugal era já o quinto país em que a contribuição do setor para o PIB era maior. Nesse ano, 19,1% da riqueza produzida decorria do turismo, ficando apenas atrás da Grécia.
“Não há qualquer problema com o turismo. O problema é o peso relativo que esta atividade tem na nossa economia e o peso que tem deve-se à fraca dinâmica da nossa produção nacional. Não é o peso do turismo que é elevado, é o peso da indústria que é reduzido, é o peso dos produtos agrícolas e da pesca que é reduzido”, explica o economista Tiago Cunha, do Grupo de Estudos da CGTP-IN.
Em sentido contrário, desde a entrada de Portugal na CEE, houve um processo de reconfiguração económica que deu primazia ao comércio e serviços em detrimento da indústria. O nosso país passou por um processo de desindustrialização acentuada nas últimas décadas, com uma queda do peso do valor acrescentado industrial no PIB de 16%, em 1995, para 11% em 2009, segundo dados do Banco Mundial, e um declínio do peso do emprego industrial de 22%, em 2000, para 16%, em 2009, de acordo com a ILOSTAT, da Organização Internacional do Trabalho.
Segundo Tiago Cunha, “há uma divisão europeia do trabalho que empurra para isto e até uma produção de produtos semi-acabados que depois são acabados na Alemanha e outros países, onde levam um valor acrescentado. É uma questão absolutamente dramática do nosso modelo de desenvolvimento”.
O professor de economia e estudos de desenvolvimento no ISEG, Alexandre Abreu, corrobora esta análise e defende que há diferenças “claríssimas” entre o centro da Europa e a periferia. “O conceito de centro da Europa e periferia é fundamentalmente a isto que se refere. Tem a ver com o padrão de especialização produtiva, mais do que um conceito geográfico, embora nalguns casos também coincida com isso. Estamos a falar de indústria, setores com mais capacidade de capturar valor, mais assente em tecnologia, conhecimento e mais poder monopolista. As economias periféricas no contexto europeu têm padrões de especializações menos sofisticados, menos capacidade de capturar valor, incluindo uma grande parte da sua estrutura produtiva em setores muito desqualificados como o turismo. É uma área que não tem praticamente margem para ganhos de produtividade, para funcionar como motor de qualificação da economia, para puxar por outros sectores”, refere.
Nos países do norte da Europa, concentrou-se boa parte do aparelho produtivo. A Portugal, Espanha e Grécia, entre outros, sobrou-lhes o turismo, um setor volátil e vulnerável. Durante vários anos, não foram poucos os especialistas que alertaram para fatores que podiam perturbar o desempenho do turismo. Terrorismo, catástrofes naturais e pandemias foram alguns dos perigos apontados. Nesse caso, a ausência de uma economia sólida, sustentada num aparelho produtivo estável, podia afundar a economia portuguesa.
Para Tiago Cunha, as duas últimas décadas “mostram que temos um modelo esgotado, que temos tido ritmos de crescimento anémicos, um pouco menos a partir de 2015”. Ou seja, uma economia “crescentemente dependente do exterior” e com um impacto como o das restrições da pandemia “vem ao de cima a dependência da economia face ao exterior e a falta de instrumentos que o Estado português tem para implementar uma outra política”. Como o economista do Grupo de Estudos da CGTP-IN, também Alexandre Abreu acha que há um conjunto de mecanismos da UE que restringem as escolhas do país. De acordo com o professor do ISEG, este fenómeno “acentua-se com a adesão à moeda única e à União Económica e Monetária (UEM) onde a falta de dinamismo se revela neste padrão de falta de especialização produtiva. A UEM retira os instrumentos que podiam ajudar Portugal a ultrapassar essas dificuldades. Mas isto já vem de bem antes do boom turístico”.
O impacto da pandemia e a oportunidade falhada
Segundo dados do Economic Impact Reporter divulgados em abril pelo World Travel & Tourism Council (WTTC), a contribuição do setor das viagens e turismo caiu 21 mil milhões de euros em 2020. Ou seja, o equivalente a uma quebra de 56,4%. Segundo o estudo anual do WTTC, “o colapso dramático do setor de viagens e turismo de Portugal varreu 21 mil milhões da economia do país”, o que “indica que a contribuição do setor para o PIB caiu 56,4% em 2020”.
Então, o WTTC lembrava que, nos últimos 10 anos, “o crescimento do setor das viagens e turismo ultrapassou o da economia em geral” e, em 2019, chegou aos 37 mil milhões de euros, representando 17,1% do PIB, mas tudo mudou no espaço de 12 meses e devido à pandemia, tendo sido de apenas 16 mil milhões de euros em 2020, o que representou 8,1%.
Para Tiago Cunha, o impacto da pandemia no turismo e na economia do país teria sido “uma oportunidade única para romper com estas décadas de estagnação” debatendo uma alternativa e apostando noutro modelo. “Grande parte dos meios financeiros que temos ao nosso dispor e as estratégias e as prioridades são as dos últimos 20 anos. O Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) não pode ser utilizado conforme uma decisão soberana do nosso governo, tem de ser utilizado segundo os princípios e objetivos da UE”, critica. “Este seria o momento de repensar o futuro que nós queremos mas estamos amarrados a estes condicionalismos. Está a utilizar-se este momento de crise para acentuar algumas dinâmicas que já vinham de trás, que são causa dos problemas que já temos e que se pretende que venham a ser agravados no futuro: maior transferência de soberania, maior dependência face à UE, acentuar de derivas federalistas e neoliberais, etc”, entende o economista da CGTP-IN.
Segundo Alexandre Abreu, é um setor que “tem sido bom” sobretudo no contexto da crise para gerar muito emprego mas é um emprego “tendencialmente de baixos salários, baixa produtividade, com pouca margem de progressão”. Considera que é “melhor do que estar afundado na recessão” mas é “altamente volátil” a partir do momento que haja algo que o afete, “seja uma pandemia, seja um problema de terrorismo”. É um setor “bastante sensível e ressente-se mais do que os outros”.
Precariedade e baixas qualificações
Mas para além da forte quebra do peso do turismo no PIB, também se fez sentir o forte impacto das medidas restritivas no emprego. O mesmo relatório aponta para a perda de 160 mil empregos em viagens e turismo em todo o país. “As perdas de empregos foram sentidas em todo o ecossistema das viagens e turismo do país, com as PMEs, que representam oito em cada 10 de todas as empresas do setor, particularmente afetadas”, refere o WTTC, destacando ainda que o impacto desta crise sobre as mulheres, jovens e minorias “foi significativo”.
O relatório indica que, no total, o número de pessoas empregadas no setor das viagens e turismo em Portugal caiu de pouco mais de um milhão, em 2019, para 843 mil, em 2020, o que traduz “uma queda de 16%”.
Os dois economistas coincidem no retrato do tipo de emprego no setor do turismo. Mesmo que não houvesse o problema de volatilidade, Alexandre Abreu entende que há um problema estrutural de longo prazo: “não tem grande margem de progressão em termos de ganhos de produtividade, em termos de dinamismo económico, em termos de qualificação, no fundo condena um bocado à estagnação. Consolida esta posição periférica de Portugal no contexto europeu que não se manifesta só no turismo”.
Tiago Cunha recorda que no ano passado ainda se tentou puxar pelo turismo com o mercado interno. “O problema é que nós somos um país de baixos salários e fracos rendimentos que não dão a dinâmica que um setor destes, com a infraestrutura que tinha montada, necessitava”, explica. Carateriza o emprego no turismo como sendo marcado por “baixos salários, precariedade, sazonalidade e alta rotatividade, acompanhado por lucros colossais” e vai mais longe na análise às consequências do atual modelo de turismo.
Muitas cidades do país, sobretudo Lisboa e Porto, vivem hoje uma grande pressão. Tiago Cunha lembra a lei do arrendamento, de Assunção Cristas, aprovada pelo PSD e CDS-PP, durante a troika, que liberalizou o mercado da habitação. Esta legislação “ajudou a expulsar a população dos bairros e das cidades” e favoreceu um determinado modelo de turismo só que, para o economista, as pessoas “vêm à procura do genuíno” e acabam por encontrar tudo igual. Houve um “grande impacto social sobre quem vive nos bairros”.
Para Alexandre Abreu, este modelo já vem de trás. Com a entrada na União Económica e Monetária, “a ideia era fazer de Portugal a Flórida da Europa”.