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Acantonamento: construir a autonomia fora de portas

Um acantonamento ou acampamento tem sempre um significado muito especial para todos nós, adultos e crianças, mas este ano a importância cresceu imenso. Cresceu na mesma medida em que cresceu a nossa vontade de sair, de respirar, de correr, de saltar, de inspirar profundamente, de nos sentirmos livres. As crianças têm pressa, são crianças durante pouco tempo.

Este ano damos a este momento um espaço ainda mais especial, cuidamos dos seus preparativos como se cuidássemos de algo frágil e que se refugia nas nossas mãos, mas que a qualquer momento nos poderá fugir por entre os dedos, sem que possamos fazer mais do que olhar para o horizonte com o olhos brilhantes e o coração apertado. Este ano somos construtores de uma casa que pode nunca ser habitada mas que construímos todos os dias mais um bocadinho com um sentimento de esperança que nos faz continuar.

E é isto a construção de um acantonamento! Este ano em particular, acantonamento é o sentido da vida apenas em 13 letras.

Onde começamos a nossa construção? 

Começamos com uma vontade que cresce em cada um de nós, começamos por perceber o que queremos para finalizar o nosso ano letivo. 

E quando temos tantas vozes a dizer coisas como: “acantonar faz-nos crescer”; “acantonar é saber viver com os outros, mesmo a sério!”; “ vamos combinar o que fazemos durantes estes dias, sem nos esquecermos que temos de deixar tempo para cada um aproveitar bem o espaço”; “já sei o que temos de levar nas malas,sem exageros!”; “ viver dias inteiros sem ir a casa é também aprendermos a cuidar de nós próprios.”; “e se alguém tem medo do escuro? O melhor é levar uma luz e presença…daquelas que se põe no corredor, sabes?”. E tantas outras frases que nos fazem pensar que talvez estejamos a fazer a escolha certa ao promover estes dias de aprendizagem fora de portas, fora de quatro paredes.

O poder pedagógico desta atividade é enorme, é algo que transcende o modo de pensar, é algo que dá mais valor ao que queremos fazer dentro das nossas salas de aula. Roubando umas palavras ao Makarenko “é um poema pedagógico”.

Autonomia é palavra de ordem 

Autonomia, consciência das aprendizagens, saber escolher o seu próprio caminho, cooperativismo, intervenção e comunicação são as palavras de ordem dentro e fora da sala. E se, dentro da sala, fazemos por organizar e gerir, de forma cooperada, a sala de aula e a vida da turma no conselho de cooperação educativa, quando viajamos para fora da sala de aula, organizamos e gerimos de forma cooperada o novo contexto, que pode ser uma quinta, uma cidade, um campo de férias. Cada um tem uma palavra a dizer sobre as decisões a tomar. E se há já coisas predefinidas, há que as perceber, entender, discutir e, se possível e necessário, propor uma mudança. Continuamos a construir em coletivo esta eterna viagem chamada autonomia. 

Para se partir da escola para outro espaço que é também de educação e aprendizagem, há também espaço para o fazermos através de aprendizagens promovidas através de projetos, guiões e outros trabalhos exploratórios-previos. Há que estudar para onde vamos, as potencialidades, a envolvência natural-cultural de cada um dos espaços escolhidos, de modo a que haja algo de interventivo, sentido em cada um dos participantes.

Todos nós fomos privados, durantes estes dois anos, de muitos dos nossos habituais circuitos de comunicação, mas agora impõe-se que estejamos, ainda mais atentos a eles, de modo a que consigamos partilhar o que esperamos de um momento tão especial, como é o acantonamento ou acampamento. Há cartas a escrever, há partilhas a serem feitas, há muita da preparação que pode e deve entrar e sair por estes circuitos de comunicação. 

Somos, muitas vezes, aquilo que conseguimos comunicar e por isso valorizamos tanto a comunicação entre grupos, entre alunos, entre adultos. Ás vezes nem sempre conseguimos atingir o que queremos, mas temos sempre uma perspectiva de fazer mais e melhor. Por isso, sublinhamos o caminho de dizer as aprendizagens, explicitar os conflitos. Só assim se aprende: elaborando a informação, ou os sentimentos, de forma a que se tornem inteligíveis para os outros.

O acantonamento é um momento em que conseguimos, e de uma forma mais genuína, mais livre e mais descomprometida, fazê-lo naturalmente e por isso aprendemos sempre tanto com isso. Achamos que todos os anos estamos um bocadinho melhor e saímos dele cada vez mais fortalecidos e a acreditar na força da comunicação, como forma de aprender e ensinar melhor. 

Na autonomia de cada um, fortalecemos o caminho que é individual e específico em cada aluno, professor e auxiliar que faz parte desta atividade.

Se há forma de termos equipas mais fortes e capazes de superar desafios, será certamente envolvendo todos na construção da sua própria autonomia. E haverá sítio melhor do que um acantonamento, em que temos de fazer as nossas próprias escolhas em quase todas as áreas do desenvolvimento humano? O que vestir, o que usar ou não, o que será mais adequado para esta atividade, o que fazer se não consigo dormir, ou se não gosto daquela comida? O que fazer se me sentir com saudades? O que fazer se se avariar o fecho dos calções? 

A solução estará sempre em nós e com a beleza de ter um NÓS enorme à nossa volta, que poderá ser tão útil, mas a escolha será nossa. E se crescemos com isto? Tanto! Tanto! Tanto! Adultos e crianças, ficamos sempre diferentes e melhores depois de mais uns dias livres fora de portas, fora do nosso núcleo, mas na mesma família, a família d’A Voz do Operário.

E os mais pequeninos?

Este ano, desde o pré-escolar até ao 2º ciclo, todos os alunos terão a oportunidade de experimentar  tudo isto.

No pré-escolar, o acantonamento e todas as visitas que fazemos têm como objetivo principal, proporcionar às nossas crianças  experiências enriquecedoras, que lhes permitam alargar os horizontes, observar, conhecer e questionar o mundo que as rodeia. 

A envolvência em todo o processo de organização e preparação do acantonamento é grande. Muitas conversas, reflexões e decisões tomadas em conjunto sobre o que vamos precisar e o que podemos fazer. 

Depois do adeus aos pais, é tempo de ficar vários dias só com os amigos e os adultos que nos são tão próximos. Estarmos juntos, permite que se crie e aprofunde relações e amizades que certamente irão perdurar no tempo. 

A autonomia e independência,  parte essencial do desenvolvimento da criança, nestes dias é potenciada a olhos vistos: o cuidar de si, calçar-se e descalçar-se, vestir-se e despir-se, arrumar os seus pertences, fazer a cama e ajudar os outros. 

A cooperação está assente em tudo o que fazemos. O sucesso de um é o sucesso de todos.

Seja numa aldeia ou num campo de férias,  esta experiência é muito enriquecedora. As atividades são todas cuidadosamente escolhidas, de forma a que as crianças tenham um contacto privilegiado com a natureza e fortaleça laços de amizade com todos os pares. 

No fim, fica sempre a sensação de que soube a pouco e começamos a contar os dias para o próximo.

1.º ciclo em contato com a natureza

No 1º ciclo partiremos à descoberta da zona de Tomar e Sertã, dando mais realce ao espaço natural e às atividades radicais, algo de que temos sentido mais falta e que mais interesse despertam nas conversas que temos em salas de aula.

Os principais motivos desta escolha prendem-se com: conhecer as regras de convivência com a natureza, em espaços estruturados e preparados para o efeito, levar a escola para fora do nosso grande edifício centenário, alargar o conhecimento para fora da área de Lisboa e Vale do Tejo e ter a possibilidade de uma pequena iniciação a uma série de desportos que são mais difíceis de praticar na nossa área da escola.

Montar toda uma dinâmica semelhante ao que se faz em sala de aula, onde escolhemos as responsabilidades/tarefas adequadas ao espaço, criarmos equipas de trabalho para tendas ou camaratas, organizamos, em alguns casos, a ementa e agenda semanal, é também algo que pode ser necessário.

Criamos previamente equipas que farão as listas de material necessário levar e aprender a fazer uma mala de viagem adequada à situação, com prós e contras. A questão dos equipamentos eletrónicos, não os diabolizando, mas mostrando o interesse que têm e a pouca utilidade que terão no acantonamento, é também um tema que muito abordamos.  

A organização necessária numa camarata ou num acampamento é algo que tem muita importância, visto que se trata de com quem vamos passar os dias, 24h sobre 24h, e ainda por cima com quem vamos partilhar o espaço de dormida, espaço este onde cada um mostrará inevitavelmente as suas fragilidades.

Tudo o que fazemos antes de partirmos é já algo que nos faz aprender muito. O que vivemos lá dá-nos mais crescimento e capacidade de partilha e, claro, aprendizagem, curricular e de outros tipos. E depois, há ainda muita coisa que fica por acomodar-se em nós e que leva anos a tomar o seu devido lugar.

2.º ciclo explora a cidade

No 2º ciclo continuamos a crescer e a criar novas oportunidades de explorar o mundo. As cidades e o poder que têm na vida das pessoas; conhecer e viver uma cidade do nosso país, com tudo o que se pode ver e viver no seu dia-a-dia.  

Com os alunos, exploramos as possibilidades, construímos conceitos e fazemos descobertas sobre o que cada cidade pode esconder. 

De modo a darmos uma nova vida ao que é acantonar, partimos à descoberta de uma vida mais citadina. Este ano, a cidade a descobrir será a bela cidade invicta do Porto.

E que bom que é quando um ex-aluno com 18 anos nos diz “que saudades dos acantonamentos, estas coisas ficam mesmo para a vida!“, ou um outro, de 21 anos, “somos tão felizes e aprendemos tanto nos acampamentos, para a vida e só percebemos isso quando já temos barba!”. Seja lá que isto for, se fica para a vida com este brilho, é porque independentemente de ser no pré-escolar, 1º ciclo ou 2º ciclo, é para continuarmos a investir.

Muitas escolas têm morrido ao longo desta difícil caminhada: a rotina, os quadrados, os percursos, as limpezas, a repetição diária sem emoções nem variações. Escolas sem solução que transformam crianças em prisioneiros e onde deixou de se brincar, de partilhar e de viver. Na nossa escola nada disto acontece. Temos encontrado o nosso caminho na complexidade das relações sociais de toda a comunidade educativa, em particular no diálogo com as famílias e na procura de soluções coletivas, para que a escola se torne, cada vez mais, da comunidade. Para que a possamos reconhecer, amar e da qual tenhamos orgulho.

Parabéns a todos nós. Nós somos o coletivo.

Equipa pedagógica do espaço educativo da Graça

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