Estava marcada para o dia 22 de Dezembro de 1920, na sede de um sindicato (a Associação de Classe dos Caixeiros de Lisboa), na rua António Maria Cardoso. Seria a primeira reunião da recém formada “Comissão Organizadora” do Partido Comunista Português.
Logo à partida, um dos membros, Manuel Ribeiro, não poderia participar porque era preso político há já dois meses. A reunião ainda teve início, sob a presidência de Eduardo Metzner. Mas a polícia invadiu o edifício e não “consentiu” que a reunião prosseguisse.
Alegou a força de autoridade que os promotores da reunião não possuíam a devida autorização do governador civil, e que não podiam ser discutidos assuntos políticos na sede de um sindicato.
Era o Portugal da 1ª República. Desta vez, a polícia limitou-se a impedir a reunião sem prender ninguém. Mas foi relativamente comum esse tipo de repressão sobre reuniões perfeitamente pacíficas de diferentes estruturas da classe trabalhadora (do jovem PCP a sindicatos e ao velho Partido Socialista Português).
Este caso foi particularmente simbólico por se tratar da primeira reunião do PCP e da primeira repressão que este partido sofreu, logo à nascença, ainda antes de enfrentar a mais longa ditadura fascista. E por se ter realizado no mesmo edifício onde depois funcionou a sede da PIDE.
A sede da PIDE
Em 1920 era uma das mais importantes sedes sindicais na cidade de Lisboa. Além do sindicato dos caixeiros, estava ali sediada a federação de operários gráficos, a cooperativa dos trabalhadores da Casa Ramiro Leão e a Federação Nacional de Cooperativas. Ali tinha nascido, no ano anterior, o primeiro sindicato da função pública (a Associação de Classe dos Empregados do Estado).
Já tinha sido ali, naquele mesmo edifício, que num debate público dias antes se tinha decido fundar o PCP, numa proposta apresentada por João de Castro, ex-deputado e ex-vice-presidente do antigo Partido Socialista. E ali se tinha constituído a sua comissão organizadora.
Ao instalar a sede da sua polícia política num edifício marcante na história do movimento operário, a ditadura de Salazar não foi original. Limitou-se a imitar um exemplo de Adolf Hitler.
Três semanas depois de chegarem ao poder, em 1933, os nazis ocuparam a Casa Karl Liebknecht, em Berlim, onde desde 1926 funcionava a sede central do Partido Comunista Alemão. E ali instalaram uma secção da GESTAPO, tornando-o um local de detenção e tortura de resistentes antifascistas e de judeus.
Uma diferença que salta à vista é que no caso alemão, depois do fascismo, a memória e a função do edifício foram em grande medida recuperadas e preservadas – apesar de ter sido bombardeado durante a 2ª Guerra Mundial. Situado na zona leste da cidade, foi reconstruindo e albergou o “Instituto Marx-Engels-Lenin”. Funciona hoje como sede do partido A Esquerda (Die Linke).
Sebastião Eugénio e Júlio Ferreira de Matos
Em relação à comissão organizadora do PCP, um traço a salientar é que pelo menos um terço dos seus membros vieram a ser presos políticos sob a ditadura. Houve um que acabaria por se tornar salazarista, Carlos Rates, mas foi uma excepção.
Dois deles tiveram um papel relevante na vida da Voz do Operário: Sebastião Eugénio, um dos mais importantes sindicalistas entre os operários corticeiros e depois entre os funcionários públicos; e Júlio Ferreira de Matos, destacado sindicalista metalúrgico e do Arsenal do Exército.
Em 1919, a classe trabalhadora sofria ainda as consequências da 1ª Guerra Mundial, com uma tremenda desvalorização dos salários, miséria e fome. Deram-se então muitos conflitos laborais por questões salariais, com greves e repressão policial sobre os trabalhadores. Na sociedade A Voz do Operário um diferendo entre funcionários e a direção foi resolvido através do diálogo, com uma comissão arbitral composta por 2 representantes de cada parte e um “árbitro de desempate” – que foi Sebastião Eugénio.
Este fundador do PCP mal chegou a ver a ditadura, pois faleceu de doença prolongada logo em Junho de 1926.
Quanto a Júlio Ferreira de Matos, foi um dos ativistas que asseguraram a continuidade da Voz do Operário na díficil década de 1930, altura em que integrou a direção e o conselho fiscal, além de colaborar pontualmente no jornal.
Vivendo até 1948, Júlio de Matos conheceu bem a ditadura. Esteve entre os membros da comissão organizadora do PCP que foram presos políticos sob o fascismo.
Eduardo Metzner
Tratando-se aqui da primeira reunião do PCP, cabe dizer algo mais acerca da pessoa que a ela presidiu, até aparecer a polícia: Eduardo Metzner. Foi também um dos primeiros dirigentes e porta-vozes do PCP, apesar de já gravemente doente, vindo a falecer em 1922.
Este jornalista, que vinha de ser redator do jornal socialista O Combate, salientou-se como poeta revolucionário. O que lhe valeu ser preso político ainda no tempo da monarquia, quando apoiou a causa republicana. Mas depressa percebeu os limites do Partido Republicano. E tornou-se anarquista. Impulsionado pela simpatia que lhe despertou a revolução bolchevique na Rússia, aproximou-se primeiro do antigo Partido Socialista e lançou-se depois à fundação do PCP.
No seu funeral, que saiu da sede do sindicato dos jornalistas, o primeiro discurso coube a um futuro presidente d’A Voz do Operário, Domingos Cruz, seu companheiro de trabalho.