O encontro ficara marcado para o número 234 da Calçada da Ajuda. Dois pátios interiores fechados por casas que se intercomunicam como espaços da mesma comunidade. Este velho pátio do segundo quartel do século XVIII tem uma longa história. Construído para servir de guarida à Secretaria do Reino, no tempo do Marquês de Pombal, que, aliás, tinha ali residência num edifício contíguo, teve várias utilizações ao longo da sua vida, uma das quais a que lhe deu nome. Lá viveu também José Lúcio Travassos Valdez, barão do Bonfim, estadista, político e militar, combateu a ocupação napoleónica e foi até ajudante de campo do duque de Wellington. A história do espaço tem, aliás, uma resumida versão num placard afixado na portada. Mas o silêncio do espaço parece conservar o murmúrio da sua vida original.
Entre uma elite iluminada e o Rei medrava a ideia da virtuosa relação entre a autoridade e a razão.Ora, o pátio é, por natureza, um espaço de partilha, de comunhão, só que, neste caso, a comunhão fazia-se entre Intendentes, Superintendentes, Inspetores, uma clique burocrata da época, que ascendia politicamente no furor do poder pombalino. Por isso, partilhariam talvez burocracia, vénias e outros procedimentos, desde que assegurando ao Marquês o controlo político do reino.
E, estávamos nós neste diálogo surdo com as pedras, quando surgiu a professora Dora, assim, do nada. Como um espírito de carne e osso arrancado das pedras de um tempo diferente, para nos conduzir ao nosso caminho, a visita à escola A Voz do Operário. E nós lá seguimos as pegadas, antes que estas se apagassem e nos perdessemos num diálogo com a história. Ora, que escola é esta que dialoga com este espaço? Era essa a nossa primeira curiosidade.
Ora, que escola é esta que dialoga com este espaço? Era essa a nossa primeira curiosidade.
Ultrapassada a porta do número 1, estávamos num corredor interior. As portas como barreiras impenetráveis perdiam o seu sentido. Aqui estava uma resposta surpreendente à pergunta anterior. Esse mundo compartimentado, estanque à curiosidade exterior, apenas acessível a uma elite iluminada, perdia uma das suas referências: as portas fechadas.
Neste caso, as crianças, ao contrário dos burocratas do reino, não reagiam com surpresa e desconforto à devassa do seu espaço. Este era o evidente primeiro sinal de mudança.
“Aqui está a Susana, a ‘teacher’, como os alunos lhe chamam”, apresentava-nos Dora, a professora da sala 1. Imperturbáveis alunos e professora respondiam: “Olá!” O sorriso da Susana não retirava atenção ao sentido da conversa, mas dava o conforto das boas-vindas aos intrometidos repórteres.
O dia estava luminoso e a luz das janelas viradas à calçada apagava sombras. As outras duas salas, com passagem para o corredor, comunicavam entre si, como se falassem a mesma linguagem. As crianças poderiam entrar e sair livremente, aparentando sempre um propósito. E, naturalmente, as entradas na sala e a passagem para o terraço, onde um grupo de alunos preparava o corso carnavalesco fiel a um tema, “Os 140 anos d’ A Voz do Operário”, faziam-se sem perturbações.
Há, naquela atitude dos inquilinos deste recanto da velha secretaria do Reino, uma espécie de aura mágica que ameaça permanentemente consumir todo o saber que se esconde nos livros, que se absorve nas tertúlias entre alunos e professores, mesmo quando os petizes não sabem ainda decifrar esses caracteres que murmuram histórias. Uma curiosidade inconformada que dá vida intensa à sala de aula, esteja ela onde estiver, porque, como referimos, a sala é, qual saltimbanco, um local errante que apenas segue as coordenadas da curiosidade e da vontade de interpelar. Que diferente forma de iluminar a razão.
Damo-nos conta de que uma música é sussurrada de uma outra sala de um anexo no recreio. Abrimos as portas e, a pequenada, sentada em círculo, bate ritmadamente com baquetas improvisadas num bombo, também ele improvisado de caixotes de plástico. Seguem, pelo que parece, as indicações de um maestro, o professor Daniel Morgado. A cadência vai-se acertando até que os pequenos bombos respondam em uníssono, como se fora só um. A música, nesta grande sala da harmonia, torna, neste caso, uníssono o som de cada um, sem atropelos, sem destaques, todos têm lugar nesse som coletivo.
Num outro canto do espaço exterior, os mais novos, chamamos-lhe carinhosamente fraldinhas, inventam também o seu mundo novo.
Ah, mas atenção! Há uma exceção. Voltando ao corredor que nos trouxe aqui, há uma porta encostada, não fechada, que dá aceso a uma outra sala onde se evita o ruído e a luz natural. É escura, silenciosa. Perguntamos à Dora — O que se passa aqui? — Sussurra, “É a sala onde os pequenos dormem a sesta”. Certo! Parece-nos, afinal, coerente. Não faria sentido que com tanto espaço para os sonhos acordados, as crianças não tivessem o seu espaço para os sonhos dormidos.
No corredor, há mais três espaços: cozinha, casas de banho e sala de refeição, por onde circulam atarefadas e silenciosamente a Teresa, a Aline, a Vânia Gonçalves, a Sinamor, a Tânia, a Vânia Lopes e a Inês Tavares. Movem-se como agentes secretos. E, não raras vezes, diz-nos Dora, os pequenos voluntariam-se para as apoiar nesta importante função logística.
Mas há aqui uma escada? A escada que dá acesso aos fundos. Fundos, quais fundos? — Bom essa escada dá acesso às velhas cavalariças — responde-nos Dora — Cavalariças? Trata-se de uma cave onde funcionavam as velhas cavalariças do tempo do Marquês, ou talvez do barão do Bonfim, agora transformadas em espaços de arrumos e de trabalho administrativo também. Ora, é aqui que o ambiente de escola se perde por instantes e, das paredes, parece brotar o espírito da velha secretaria do Reino. A luz volta a dar espaço ao desconforto da sombra. Mas algo nos surpreende. Ultrapassada uma ombreira em arco aparece uma biblioteca pejada de livros, de saber, portanto.
Ultrapassada uma ombreira em arco aparece uma biblioteca pejada de livros, de saber, portanto.
Ora, pensamos nós, está explicado. Mas que grande metáfora. O Marquês haveria de deixar o seu sinal: a razão ilumina o poder. Azar dos Távoras, às vezes somos traídos pelo anacronismo. Não podemos ignorar que uma das marcas da governação pombalina foi a Reforma da Educação.
Subimos então os degraus de volta ao corredor, a pensar na metáfora e damos de caras com o turbilhão do fim de dia.
A pequenada dispersa-se pelas salas como se o caos ganhasse uma ordem. Um dos pequenos leva na mão a esfregona e deixa o brilho por onde passa. Outro limpa mesas deixando-as vazias do material didático e os objetos, como que por toques de magia, regressam às respetivas prateleiras. Tudo tem uma ordem e são centenas as mãos que se cruzam no espaço da sala sem que se atropelem.
Perante o nosso espanto, Dora resolve explicar: “O dia também tem as suas rotinas. Mal chegam à escola arrumam as suas coisas e depois, alguns, os que levam almoço de casa, vão ao frigorífico deixar as marmitas. “Eles têm autonomia para ir ao frigorífico”, adiantaria a nossa cicerone nesta visita. “Depois, brincam até as 9h30 e vão para as salas. São três salas e todos têm uma tarefa”. — Então? — perguntamos nós. “No início da semana têm o Conselho onde, entre outras coisas, definem tarefas” coletivas e individuais. E então, explica Dora, “a tarefa de dirigir o conselho, normalmente duas crianças, dar a palavra, encher as garrafas de água, varrer a sala, o guardião das folhas brancas, porque elas desaparecem, o que distribui o material quando há essa necessidade, dar presenças e saídas e registando faltas, marcar tarefas, escrever a ata nos conselhos, o mapa do tempo e gerir a atenção plena. De manhã fazemos sempre uma pequena massagem na cabeça, para acalmar. No início da manhã há um momento de Yoga, a que chamamos atenção plena, para quando vêm do recreio um pouco mais agitados. No início da tarde, há um momento de leitura individual para ajudar a acalmar. São estratégias para que se sintam mais focados”, explica a professora.
E continua, “o Conselho reúne-se à sexta-feira, para fazer a avaliação dos planos individuais e do plano semanal e, à segunda-feira, para fazer a discussão do diário de turma e debater o que de bom e de mau aconteceu na semana. Tudo o que o grupo quer fazer, passa pelo diário e depois pela discussão à segunda-feira de manhã”.
E o que é a mostra de produções? Responde-nos desta vez a Carolina. “Serve para mostrar qualquer coisa que nós possamos produzir”. E o Luca complementa: “a leitura de textos, por exemplo, é a apresentação à turma de um texto que escrevemos.”
Num ápice, a sala fica arrumada, a pequenada mostrou em poucos segundos como todo aquele caos é aparente.
Num ápice, a sala fica arrumada, a pequenada mostrou em poucos segundos como todo aquele caos é aparente.
Saímos da escola cantarolando uma música que nos ficou na cabeça e que ouvimos a pequenada cantar, sentada em redor do professor Daniel Morgado: “Eu sou um porco cheio de estilo, um bocadinho redondo, mas não vazio!”. Os miúdos cantavam como se se fossem transformando em personagens daquela fábula e nós olhamos para trás, não vá o Marquês lançar uma sonora gargalhada.