Ao longo do último ano, temos ouvido inúmeros relatos de trabalhadores que, privados do seu trabalho e do seu salário, estão a passar por um dos períodos mais dramáticos das suas vidas. Entre esses trabalhadores encontra-se um grupo muito particular que viu a sua atividade ser suspensa indefinidamente por imposição legal ou por impossibilidade de realização, já que a despesa ultrapassa o retorno financeiro. Os trabalhadores da cultura, em novembro de 2020, são ainda uns dos mais castigados e um símbolo da crise que cada vez mais se evidencia no nosso quotidiano. 

No passado mês de outubro, usando o fundo social de emergência criado pela Câmara Municipal de Lisboa para o apoio à cultura, A Voz do Operário, depois de um desafio da Clave na Mão (uma pequena e recente agência de artistas e, pelos vistos, uma belíssima programadora de espetáculos), abriu as portas para o seu primeiro festival de Jazz – “O Jazz Tem Voz”. Ao longo de três dias, todo o recinto da Sociedade foi ocupado por um estilo que tantas vezes se divorcia da cultura popular, mas cuja génese está, precisamente, no povo e nas classes mais exploradas. O Jazz é tanto dos bares burgueses das grandes metrópoles mundiais, como é dos desfiles carnavalescos ou fúnebres de New Orleans, dos seus artistas de rua e dos seus músicos vadios, das coletividades dos bairros populares e dos concertos de massas.

Mas é claro que o Jazz tem uma identidade associada ao seu país de origem – os Estados Unidos da América – , não obstante a sua natureza ser transatlântica e ter passado nos navios negreiros, com os escravos vindos da costa de África, que já haviam desenvolvido técnicas evoluidíssimas de polirritmia e polifonia. A sua evolução nos EUA acabou por seguir a via da elitização, afastando-se, muitas vezes, das suas lutas iniciais e aburguesando-se nos grandes salões e auditórios.

Até há poucas décadas, o Jazz em Portugal era, por isso, uma tentativa de replicar os músicos mais reputados do Jazz americano. Porém, desde os anos de 1980, essa realidade tem-se alterado e o Jazz português tem hoje tonalidades atlânticas e mediterrânicas que lhe dão a sua própria identidade. Foi isto que a programação da Clave na Mão para O Jazz Tem Voz procurou trazer à Voz do Operário – um Jazz que seja nosso. E foi assim que o festival abriu, com o Sexteto de Bernardo Moreira, um músico de exceção que apresentou um trabalho muito sério (Entre Paredes), onde o Jazz se mistura com a música tradicional portuguesa de forma tão natural e melíflua que se torna fácil sentirmos a música como nossa, da nossa rua, do nosso bairro, da nossa memória. Este Jazz com cheiro a Tejo ou a seara é, também, uma porta para romper com uma ideia de erudição intangível que muitas vezes nos é vendida e que nos afasta do prazer da descoberta.

É preciso referir que este festival não se limitou a ter três concertos, em três noites, e arriscou num formato de esclarecimento com um debate integrando também uma atividade com o envolvimento de dezenas de crianças da escola da Graça d’A Voz do Operário, na produção de ilustrações e frases sobre o Jazz. E há nessas frases e nessas ilustrações mais verdade do que em muitas críticas que até hoje já se escreveram, porque o Jazz tem um cheiro, tem um sabor, tem uma cor e todos esses sentidos são despertados em nós de formas tão distintas que nos revelam até o improviso do nosso ser.

Talvez tenha sido esse o papel de César Cardoso, que para além de ser um saxofonista com uma criatividade invulgar, é também um teórico do Jazz que muito tem tentado desmistificar essa tal erudição, trazendo o Jazz à terra a partir das nossas experiências individuais e coletivas, transportando essas experiências para os instrumentos ou recolhendo de cada instrumento uma possibilidade de interpretarmos ou sentirmos o mundo à nossa volta, num diálogo constante.

Antes, na tarde de sábado, no Largo de Santa Marinha, Quang Ny Lys, o projeto de Maria Rita, João Mortágua e Mané Fernandes revisitou alguns dos standards (composições icónicas da história do jazz) com uma abordagem não-convencional, envolvendo com roupagens contemporâneas, num recurso à guitarra e ao saxofone, o som mais tradicional do Jazz.

Outra iniciativa de grande importância foi assegurar momentos de partilha familiar ao longo do fim-de-semana, onde as crianças puderam encontrar um registo que hoje já não lhes chega de forma tão direta. Lembremos que houve tempos em que os genéricos dos desenhos animados eram temas de Jazz: a Pantera Cor-de-Rosa, os Flinstones, o Top Cat, o Batman, o Homem-Aranha, os Simpsons, entre tantos outros. A relação das crianças com a música também começava na cultura de massas, através da televisão, sem as infantilizar. 

Mas, também os adultos gostam de sentir uma relação com a música popular que ouvem habitualmente. Compreender a estrutura da música que ouvimos tantas vezes na rádio ou nos bares através dos diálogos com estilos mais aplicados nessa arquitetura da música torna-se numa experiência muito importante para nós, porque nos devolve a ligação a cada elemento do mundo, a cada som, a cada pedaço de chão e de céu. O papel do músico de Jazz é, muitas vezes, construir esse diálogo, sem tentar ser o tipo mais inteligente da sala. 

Foi isto que nos trouxe o projeto Songbird: um reportório de canções que conhecemos de todos os dias, clássicos da música popular, bandas sonoras de filmes ou de outras memórias, tocadas de forma simples e íntima ao piano e no contrabaixo. A dupla Luís Figueiredo / João Hasselberg fez as honras de encerramento de O Jazz Tem Voz com a ternura que se pede ao fim da tarde de domingo.

E fica uma nota final, fundamental neste tempo que vivemos: este festival foi de uma organização irrepreensível, transmitindo um grande profissionalismo e segurança a todos os que o visitaram. Foi, também, uma das várias iniciativas que se começam a realizar e para as quais as coletividades têm hoje uma importância central, porque é este o modo das comunidades fazerem a sua própria cultura sem dependências externas que condicionam as suas preferências e limitam os seus horizontes. É este o caminho para garantir trabalho a todos os trabalhadores da cultura, dos técnicos aos músicos. É disto que precisamos: acesso e unidade.

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