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Museus: construção do lugar coletivo

Em 2019, foram inauguradas as bases do Museu Nacional Resistência e Liberdade, na Fortaleza de Peniche. Poucos meses depois, a Câmara Municipal de Santa Comba Dão voltava a anunciar a intenção de avançar para a criação de um “Museu Salazar”, onde se pretende dar enfoque à vida e percurso político do ditador que subjugou o país durante grande parte do regime fascista, em vigor durante 48 anos. Declarações ambíguas por parte do presidente da câmara quanto aos conteúdos e objetivos do espaço desencadearam receios de que este não venha a garantir a denúncia dos crimes do regime fascista de Salazar e que, pelo contrário, sirva o processo de branqueamento histórico.

Simultaneamente, chegam notícias sobre a Biblioteca Museu República e Resistência (BMRR), em Lisboa, estar em risco, com os deputados municipais do PS, PSD e seis independentes a votarem contra a recomendação do PCP de “manter a BMRR no mesmo espaço, com o mesmo nome e âmbito, dotando-a de meios logísticos que permitam uma maior dinamização”.

Há pouco mais de um ano, os conteúdos e até o nome de um hipotético museu sobre os “descobrimentos” motivavam um aceso debate.

A memória e a história do país e as suas fixações museológicas parecem assim em plena convulsão.

O que esperamos de um museu no século XXI? Um mero lugar de memória? De enaltecimento? De debate? Que advogue uma neutralidade científica? E não é necessariamente político o ato de reservar um espaço à preservação da memória de determinado objecto histórico?

À margem da polémica, mas plenamente no centro deste debate, o Museu do Neo-realismo apresenta-se como uma tentativa de síntese destas problemáticas, apostando numa abordagem que, assumindo um olhar próprio, parece rejeitar um exercício meramente laudatório e simplista.

Nos anos 80 do século passado, um grupo de intelectuais ligados ao neo-realismo, de onde se destaca António Mota Redol, filho de Alves Redol, um dos principais vultos do movimento, começou a discutir a ideia de criação de um espaço, em Vila Franca de Xira (ponto nevrálgico do casamento entre o movimento e respectiva filiação política), dedicado àquele que é, considerado por muitos, o maior movimento artístico português do século XX. Esta ideia colheu apoio por parte da autarquia de então.

Durante os anos noventa, o projeto desenvolveu-se em torno dos arquivos e bibliografia, e o seu acervo foi sendo largamente enriquecido por doações de espólios de tipos diversificados de vários nomes ligados ao movimento, tendo sido a primeira delas feita pelo escritor Manuel da Fonseca, em 1991. Desenvolveu assim um vasto conjunto de fundos, com destaque para espólios literários e editoriais, arquivos documentais (impressos e audiovisuais), acervos iconográficos, obras de artes plásticas, bibliotecas particulares e já uma biblioteca especializada na temática neorrealista. Apesar deste consistente trabalho de recolha, preservação e investigação, só em 2007, depois de passar por vários locais provisórios, o museu viria a ter o espaço definitivo. O edifício, concebido pelo arquiteto Alcino Soutinho, organiza-se entre exposições temporárias e o núcleo central, com a exposição de longa duração, atualmente em processo de remodelação.

David Santos dirigiu o espaço até 2014, ao qual se seguiu António Pedro Pita e, em 2018, a atual responsável, Raquel Henriques da Silva.

Quem hoje visita este museu não encontra um santuário. O movimento que lhe dá sentido nunca foi motivo de agrilhoamento. Pelo contrário, dele se parte para o diálogo com as novas abordagens e linguagens da arte contemporânea que têm espaço regular, desde a sua abertura, em exposições temporárias. Todas as exposições são acompanhadas por programação específica, nomeadamente conferências, concertos, visitas guiadas pelos próprios curadores.

Atualmente estão patentes três exposições temporárias e a exposição de longa duração, cujo título – A Batalha pelo Conteúdo – remete para a questão central do movimento. Móbil de profundas divergências entre os seus intervenientes, as conceções sobre forma e conteúdo atravessaram e enformaram todo o debate neorrealista. Esta questão, que imprimiu ao movimento um caráter profundamente heterogéneo, está vincadamente presente na exposição. É através dela que conseguimos percorrer o debate, as preocupações e, naturalmente, as várias expressões artísticas que brotaram no seio do movimento.

Mais recentemente, no final de 2018, o museu recebeu uma exposição dedicada ao artista Cândido Portinari, um dos maiores vultos da pintura brasileira e cuja obra apresenta fortes ligações ao ideário neorrealista.

Já em maio, foi inaugurada a exposição dedicada ao centenário do nascimento do escritor Fernando Namora, onde não se dispensa a passagem pelos seus exercícios plásticos. Esta exposição estará patente até 17 de novembro.

O Museu dispõe de um centro de documentação aberto a consulta, de uma livraria temática, e recebe o depósito de várias coleções privadas, sendo a mais relevante pertencente à associação promotora do Museu do Neo-realismo.

A vida e trabalho deste projeto nunca estiveram a salvo da discussão permanente sobre as várias questões que atualmente fazem correr tinta quanto à disputa do papel que os espaços museológicos devem ocupar. Mas parece mostrar que a síntese necessária não se encontra recusando a politização e sonegando o papel da História na construção do lugar coletivo. E tal não é um pormenor.

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