Para além de violar os Direitos Humanos Universais ao contrariar os princípios fundamentais de dignidade, igualdade e não discriminação consagrados no Artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o projeto de lei é também inconstitucional no contexto do ordenamento jurídico português, que define o acesso à saúde como um direito fundamental que precede condições administrativas.
O artigo 64º da Constituição da República Portuguesa (CRP) assegura o direito fundamental de todos os cidadãos à proteção da saúde e reafirma o dever do Estado em garantir esse direito através de um SNS universal e geral. O projecto de lei representa um retrocesso legal e social ao atacar o caráter universal e inclusivo do SNS. É uma forma de discriminação que opera por meio de uma barreira administrativa e financeira e que atinge desproporcionalmente imigrantes, sobretudo os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade.
A aprovação do projeto de lei significaria que imigrantes não residentes ou em situação burocrática irregular apenas teriam acesso a cuidados de saúde urgentes, sendo ainda exigida a apresentação de prova de cobertura de cuidados de saúde (i.e, seguro de saúde) e documentos de identificação para contacto. O projeto de lei ignora, assim, que muitos imigrantes permanecem em situação irregular em consequência da morosidade administrativa da AIMA, penalizando pessoas que se encontram presas num limbo administrativo, e sujeitando-as a custos de saúde que não podem comportar. A regularização não atempada dos imigrantes em Portugal impede a inclusão nos sistemas formais de saúde. Por sua vez, e sendo a saúde um pilar essencial para a integração social, ao eliminar o acesso pleno a cuidados de saúde, o projeto aprofunda a precariedade social.
O artigo 13º da CRP afirma que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, proibindo expressamente qualquer discriminação com base em “(…) território de origem (…) condição económica ou condição social”, estando os imigrantes não residentes ou sem situação regular ao abrigo do artigo 15º da Constituição da República Portuguesa. Para além disso, a Lei nº 93/2017 do “combate à discriminação baseada em critérios como nacionalidade e condição social”, estende ainda o direito à igualdade e proibição de discriminação no âmbito de políticas e serviços públicos, incluindo “a segurança social e os cuidados de saúde” (artigo 2º a.), considerando-se discriminatórias as práticas de “recusa ou limitação de acesso aos cuidados de saúde prestados em estabelecimentos de saúde públicos ou privados (artigo 3º e.).
Foi com base nestes pressupostos que, até à data, mais de 1500 profissionais de saúde se opuseram a esta proposta de alteração à Lei de Bases em Saúde, através da assinatura da carta aberta “de Profissionais de Saúde contra a limitação do acesso ao SNS a cidadãos não nacionais”, que se remeterá à Presidência da República.
No que concerne ao impacto económico, os dados demostram que a utilização do SNS por estrangeiros não residentes tem um impacto residual, representando menos de 1% dos atendimentos no SNS em 2023, incluindo turistas. A exclusão proposta não resolve os problemas estruturais do SNS, sendo uma manobra de diversão populista. De facto, ao dificultar o acesso a cuidados de saúde primários, esta medida aumenta o risco de propagação de doenças transmissíveis, bem como a agudização de doenças crónicas, que por sua vez irão comprometer a saúde de toda a população e sobrecarregar os serviços de urgência e internamento. Ao acentuar a discriminação sobre uma população que por si só já se encontra em situação de grande vulnerabilidade social, atacamos sobretudo os que dentro desta comunidade mais necessitam de cuidados de saúde e vigilância específicos, nomeadamente crianças, adolescentes e grávidas. Se o projecto de lei avançar, deixa de estar assegurado o acesso regular à vacinação, bem como a adequada contenção de doenças potencialmente transmissíveis.
A saúde é um direito universal, não um privilégio condicionado a um estatuto migratório que se encontra muitas vezes condicionado por atrasos institucionais. É com convicção que os signatários esperam a revogação desta medida e o compromisso do Governo com o acesso universal à saúde e a proteção do projecto do Serviço Nacional de Saúde.