O Jorge tentava evitar a rua desde janeiro, altura em que a falta de condições para arrendar um quarto o obrigaram a deixar os bens em casa de um conhecido e enfrentar a rua. “Não tinha outra solução”, diz-nos, a não ser, “procurar guarida, primeiro no banco de urgência do S. José e depois no aeroporto”. Já foi da Marinha Mercante e “tinha uma vida confortável”, mas um divórcio obrigou-o a uma vida menos desafogada financeiramente, ainda assim, diz-nos, “dava perfeitamente” para arrendar o seu quarto e tinha o seu então como segurança. Mas a arrendatária acabou por entregar a casa ao senhorio. Ainda tentou negociar o arrendamento, mas a casa iria custar-lhe mais do que o ordenado, “para não falar dos dois meses de caução” exigidos pelo senhorio. Procurou, mas por fim percebeu que não havia renda que coubesse no seu ordenado, a não ser a rua onde passou o seu 64.º aniversário.
Com o Adérito passou-se mais ou menos o mesmo. Mais novo, tem 62 anos, Adérito enviuvou duas vezes, trabalha na CML e meteu licença para trabalhar na Holanda. Esteve alguns meses sem vencimento e regressou, só que, entretanto, um acidente levou-o para a cama do hospital durante meio ano. Está de baixa, à espera de uma intervenção cirúrgica que lhe devolva alguma mobilidade, para poder voltar a trabalhar. Só que, ao fim de 3 anos deixou de receber a baixa. Tinha um quarto, só que “o senhorio precisou do quarto para um filho que ia casar” e não lhe restou alternativa que não a rua. Recebe os pouco mais de 200€ de rendimento mínimo e já viveu numa tenda, na rua, junto ao Banco de Portugal.
A inflação do preço das rendas, a especulação imobiliária, a falta de respostas na habitação pública, o emprego precário e mal pago, assim como pensões miseráveis e, por fim, um apoio social miserabilista, a que chama de Rendimento Social de Inserção a 237,25€ são contributos sérios para o problema. Em suma, as políticas públicas são fábricas de sem-abrigo.
São mais de 13 mil e, diz o relatório de 2023, “independentemente da condição em que se encontram, sem teto (vivem na rua) ou sem casa (vivem em instituições), a maioria das pessoas na situação de sem-abrigo são homens, solteiros e de nacionalidade portuguesa”.
A caraterização está feita e diz-nos que “as pessoas na condição de sem teto tendem a ser mais jovens, (57% têm, no máximo, 44 anos)” enquanto “53% dos sem casa têm mais de 45 anos, mas são menos escolarizados”. Se os sem teto se “dividem equitativamente, entre nenhum nível de ensino, o 1º ciclo e o 2º ciclo do ensino básico (31%, 30% e 33%, respetivamente)”, nos sem casa a escolaridade anda entre o 2º / 3º ciclo do ensino básico (48%)”.
Mas do relatório ressalta um dado elucidativo: “mais de um quarto das pessoas sem casa mantêm uma relação com o mercado de trabalho, contando com rendimentos do trabalho (ocasional ou regular) ou com prestações substitutivas desse rendimento, como seja o subsídio de desemprego; proporção que é de 12% no caso dos que se encontram na condição de sem teto”. Quer dizer que os salários baixos são outra das matérias primas desta fábrica de sem-abrigo.
Pedro Ventura, presidente da Associação de Inquilinos Lisbonenses, garante que 60 a 70% das pessoas na condição de sem-abrigo estão em Lisboa: “Na área metropolitana de Lisboa há, neste momento, 3400 pessoas sem teto e 1500 sem casa”, garante-nos. Mas adianta um dado ainda mais crítico. “Esse número não reflete a procura total de habitação que existe nos 18 municípios. Os dados que, ainda assim, podem não ser muito fidedignos, apontam para 30 mil pedidos. Existem várias situações, os que não conseguem acompanhar o valor da subida das rendas, que recentemente voltaram a aumentar. Falamos na Área Metropolitana de Lisboa (AML) de rendas média na ordem dos 1500 euros, que não é comportável com o rendimento dos portugueses, e há situações de pessoas que trabalham e não conseguem com o seu ordenado pagar uma renda em Lisboa”.
A própria DECO faz referência a um sobreendividamento das famílias provocado pela questão da habitação, um fenómeno que tem levado à contração de empréstimos bancários, empréstimos ao consumo, para dar entrada de rendas. “Uma situação altamente explosiva e perigosa”, refere Pedro Ventura, de resto, adianta, “os últimos dados do Eurostat dizem que a evolução dos rendimentos dos portugueses em relação ao valor da renda das casas e da habitação coloca Portugal no pior nível de todos os países da UE”. E, não é só o Eurostat, também o insuspeito FMI refere Portugal como “um país de risco” porque os rendimentos das famílias não acompanharam a evolução do preço da habitação e das rendas. E, vaticina Pedro Ventura, “em 2025 a tendência é o agravamento da situação”.
Se nos centrarmos nos 18 municípios da AML, ficamos a saber, diz-nos Pedro Ventura, que “há, neste momento, cerca de 900 pessoas a viver em quartos arrendados” só que, adianta o responsável da AIL, esses números podem ser muito mais expressivos “porque o último relatório da Direção Geral das Finanças, que é de novembro, sobre a questão do arrendamento, refere que 60% dos contratos não são declarados e, portanto, a informalidade reina nesta área”.
Afinal, perguntamos, o que está a falhar? “Não há controlo de rendas e as famílias portuguesas cada vez têm mais dificuldade em pagar as rendas, a habitação pública tarda em aparecer na quantidade que se necessita, o combate aos devolutos não é realizado, o actual governo, antes pelo contrário, aquilo que está a fazer é a compra de habitação e não fomentar uma política de arrendamento de habitação”. Para além disso, diz-nos, “o combate aos devolutos públicos também não é realizado”.
E, em matéria de devolutos Pedro Ventura adianta alguns exemplos, desde logo o Estado: “o antigo edifício do Ministério da Educação na 5 de Outubro tem 10 anos de abandono; o Edifício da Segurança Social do Areeiro tem 10 anos de abandono; o Instituto de Ação Social das Forças Armadas, tem mais de 600 imóveis devolutos, 400 dos quais localizam-se na cidade de Lisboa”. Só estes exemplos, garante-nos, “seriam um contributo muito importante para diminuir este problema da falta de habitação na cidade de Lisboa”.
Depois, impõe-se uma maior articulação entre os 18 municípios da AML porque, sustenta Pedro Ventura, “se há um município que atua de uma forma mais efetiva o que acontece é que o problema vai-se deslocar para esse município, ou seja, as populações vão procurar de alguma forma os municípios que oferecem uma melhor solução” e, garante, começa já a haver “algumas migrações de pessoas necessitadas para alguns municípios, o que acaba por os pressionar. Dá como exemplo a rede de transportes metropolitana que “estava completamente desorganizada” e que os municípios conseguiram transformar numa “rede articulada e comum”, uma solução que pode ser aplicada nas políticas de habitação. “Temos de ter essa rede articulada e comum porque no caso dos sem-abrigo isso é fundamental”.
A aposta nas soluções assistencialistas
A resposta assistencialista parece ser a solução milagrosa defendida pelo governo e pela autarquia lisboeta. Recentemente, na inauguração do novo centro de acolhimento temporário do Grilo, da Santa Casa da Misericórdia, no Convento do Beato, em Lisboa, para pessoas que vivam na rua, por, apesar de trabalharem ou terem algum rendimento proveniente de formação, não terem o suficiente para arrendar uma casa ou um quarto, contou com a presença e o entusiasmo da Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Palma Ramalho, e do presidente da autarquia lisboeta Carlos Moedas. O autarca chegou mesmo a revelar que no ano em curso teria retirado, com o apoio da Santa Casa de Misericórdia, 130 pessoas da rua. Esta solução, que alberga sem-abrigo entre os 18 e os 65 anos, poderá vir a ter capacidade para 90 pessoas, porém encerra uma ironia, cruel: até os sem abrigo são discriminados, distinguindo, neste caso, aqueles que têm um tão magro rendimento que não dá sequer para deixarem de o ser, dos que nem esse magro rendimento dispõem.
“Intervenções assistencialistas ou imediatistas”, diz-nos Pedro Ventura, tem como exemplo a Igreja dos Anjos. Pegam nas pessoas que aí estão, distribuem-nas em instituições ou pensões, mas não se debruçam, nem tentam perceber como é que as pessoas chegaram lá”. O presidente da AIL defende que “as políticas públicas de empregabilidade e formação, e de criar condições para que as pessoas ganhem autonomia, é que permitem que o problema não se prolongue, porque não sendo assim, o que andamos a fazer é a financiar instituições, a pagar serviços, e isso não resolve as situações sociais, pelo contrário, leva a que o problema possa estar escondido, mas que fique sempre latente”. E deixa uma pergunta: “E quando a CML deixar de ter disponibilidade financeira, o que vai ser destas pessoas?”
O Jorge, um dos sem-abrigo, dizia-nos que abominava o Natal por ser nessa altura que todos se lembravam dos coitadinhos: “Dou um exemplo. O meu amigo, que costumava ficar também a dormir no aeroporto, convidou-me para ir ao almoço de Natal do Hotel Pestana, no Alto de Santo Amaro. Nem queria ir porque já estava à espera daquilo. Aqueles voluntários que promovem aquele almoço é tudo gente de famílias ricas, dá para perceber. Aquilo é tudo muita simpatia, mas lá no fundo pensam eles: – ‘É pá estes gajos nunca mais saem daqui para fora’. Aquilo é chocante. As pessoas levam tupperwares, para trazer comida para os dias seguintes, roubam bolos, é uma confusão. Os voluntários estão à espera que acabe o almoço, despacham os coitadinhos e depois vão almoçar no outro salão com tudo à grande e à francesa”.