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Educação

Venha a aprendizagem

Estamos em Setembro. No hemisfério norte começa o outono e o ano escolar. O primeiro fenómeno é certamente natural. A escola parece ter ganho esse estatuto em pouco mais de 10 gerações. As crianças vão para a escola para aprender, dizem os adultos. Como se aprender fosse efeito da causa ensinar.

Aprender, educar, ensinar, instruir, em que ficamos?

As crianças têm capacidades inatas para aprender, sabemo-lo bem. Observam, interagem e aprendem. Para se apropriarem das coisas da cultura necessitam de duas ferramentas: a fala e a escrita. Aprendem a usá-las, usando-as. Em todas as culturas, são projetos de aprendizagem importantes. 

As crianças aprendem como dizer as palavras e as expressões. E aprendem o que não se diz. Fazem tentativas e são corrigidas. 

Depois, as crianças identificam o desenho da fala: afinal o pai, a mãe, o educador, a ama, não são mágicos nem seres superiores quando pegam no livro e o contam. Simplesmente, já sabem como a fala se desenha. E as crianças também o saberão.

Nem sempre foi assim. Desde o início da história da escrita até hoje, demasiados pais e demasiadas mães não contam o livro porque não lhes foi permitido aprender a fazê-lo. Durante muito tempo foram instruídos para não saber, para só ouvir quem sabia.

No início era mais fácil. Impedir a maioria da população de ter acesso direto à palavra transcrita mantinha-a na ignorância. Era a melhor forma para ritualizar magicamente o poder de quem sabia. Nos reinos, nos templos, nos campos, nas cidades.

Nos estados, o poder ritualizado começou a perder a sua magia, já não bastava cultivar a ignorância. Surgiram as escolas para pobres para ensinar a obediência, para instruir a ser bom servo. Não eram templos do saber, eram escolas para contrariar a aprendizagem inata. E quem se sentia genuinamente comprometido com os pobres procurava educá-los para se tornarem pobres felizes. Só. Caso a aprendizagem da leitura fosse autorizada, controlava-se o que era lido nas bibliotecas com listas de livros proibidos e a excomunhão para quem os lia. 

Hoje, os Estados-Nação, com sistemas de ensino organizados, obrigam as escolas a um plano de trabalho, um programa. Em 1901, na escola primária belga do meu avô, a leitura e a escrita faziam parte do programa, a aritmética era facultativa e desaconselhada para as escolas dos pobres. Os livros escolares contavam as histórias de heróis locais ou de origem incerta, dando corpo a um Estado-nação inventado apenas setenta anos antes. O programa mudou, o tempo de escola aumentou, os mitos dos heróis nacionais ficaram.

Os programas de Estados-nação orientam para escolhas. Mais do que as apoiar, essas escolhas antes conduzem umas aprendizagens e travam outras. Perguntas de crianças e de jovens são cortadas com “não é assunto para este ano”, “não faz parte do programa”, “não é coisa para a tua idade”. A ignorância passou a ter dois sabores: a autorizada e a não-autorizada. A não-autorizada aparece nas pautas, nos testes, nos exames. Da ignorância autorizada a escola não fala.

Quando em excesso, a ignorância não autorizada certificada reprova o aluno. A ignorância autorizada em excesso surge em blogues, fóruns, teorias de conspiração, em comunidades de aprendizagem, até. Raramente convida ao árduo trabalho de aprendizagem.

Pois bem. E a nossa Sociedade de Instrução e Beneficência nisso tudo? Permitam-me uma reflexão pessoal. 

Vejo o termo Instrução conotado com o tempo em que a instituição foi fundada. Hoje o termo seria talvez ensino, ou educação.

Refiro dois episódios que vivi n’ A Voz do Operário. 

Quando, em 1989, crianças na minha turma me pediram ajuda num projeto sobre descobrimentos, eu respondi “Era interessante falar de descobrimentos por navegadores sem ser de Portugal.” Fiquei surpreendido pela reação das crianças: “Houve? Ou estás a brincar?” Referi a reação à mãe de uma das crianças, ela própria historiadora. Ela respondeu-me logo: “E não te lembraste de falar com eles dos descobrimentos, visto do lado dos ‘descobertos’?”

Não deixei de ser o adulto a apoiar um projeto de aprendizagem formulado por crianças, provocando-as para levar mais longe a sua aprendizagem. Mas com este projeto senti-me aprendente: mudar de país e de escola ajudou-me a perceber o perigo de ficar refém da ignorância autorizada. 

No início dos anos 1990, docentes e crianças aprenderam a programar com a linguagem LOGO. Graças à professora Margarida Faria, A Voz do Operário integrava este projeto pioneiro para a Europa, relacionado com a introdução de computadores na sala de aula. O estado português inscrevera a programação LOGO nas orientações curriculares para a matemática. N’ A Voz, os projetos idealizados pelas crianças e acompanhados pelos docentes ultrapassavam em muito essas orientações. Alguns anos mais tarde, a linguagem LOGO saiu das orientações curriculares mas enquanto o software esteve disponível, continuaram a fazer-se projetos.

Enquanto instituição reconhecida, A Voz do Operário compromete-se com as orientações curriculares e os programas emanados do Ministério de Educação. É a sua obrigação. Mas, desde há anos, a Instituição quer ir e vai mais longe. Convida todos os trabalhadores com funções educativas em todos os equipamentos a refletir acerca do seu papel de educador, seja qual for a sua função. 

Penso interessar a todos, hoje como ontem, evitar a armadilha da ignorância autorizada. Para nós enquanto adultos, para todas as crianças com as quais trabalhamos. Começa pelo apoio na aquisição de vocabulário na creche, perdura no acompanhamento das crianças no pré-escolar, 1º e 2º ciclo. Não é fácil. Obriga a grande humildade por parte de todos. Obriga a ver a ação individual e coletiva como um suporte na aprendizagem. Só assim, a autoridade advém da autoria, do saber de cada um e não da posição ou da função.

Venha mais um ano cheio de projetos protagonizados por crianças e adultos, discutidos e avaliados em cooperação. É o desafio permanente para contrapor dogmas, seja quais forem.

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