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Imigração

As mãos que trabalham a terra

Trocaram os seus países pelo nosso. Na viagem, muitos foram detidos e espancados pelas polícias fronteiriças pelo crime de procurarem uma vida melhor. Altamente explorados, vendem a sua força de trabalho a empresários que se aproveitam das fragilidades de quem chega para aumentar os seus lucros. Em Portugal, estão essenciais em setores como o turismo, a agricultura e a construção. Têm um papel importante para estabilizar as contas do sistema de segurança social.

Que sufoco. Azinhaga do Ribatejo, 39 graus. No caminho, um milharal a perder de vista numa terra fértil banhada pelo maior dos rios que atravessa o nosso país. É a lezíria, uma evolução da palavra al-jazira, nome que devemos à presença árabe. Foi nesta aldeia com 1414 habitantes, segundo o censo realizado em 2021, que nasceu o único Nobel da Literatura de língua portuguesa. 

Em 1998, no dia em que recebeu esta distinção, José Saramago discursou perante o mundo recordando os avós: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia, Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro”.

Em 1980, o escritor da terra havia escrito um dos maiores hinos à gesta coletiva dos trabalhadores rurais do nosso país. “O livro chama-se Levantado do Chão porque, no fundo, levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro”, viria a explicar mais tarde José Saramago. Pelas ruas da Azinhaga, a memória do escritor está em todas as partes e, de outras latitudes, passeiam mulheres e homens que fazem da sua vida levantar do chão o que outros comem. Hassan Ali, Muhammad Hussain, Shazad Ali, Gopi, Waqass Ahmad Sadiqi são alguns dos trabalhadores agrícolas que deitam as mãos à terra e que aceitam conversar com A Voz do Operário.

Uma viagem pelo inferno

Da Azinhaga a Islamabad, são exatamente 9 mil quilómetros. É esta a distância a que estes homens estão do seu país. Segundo dados dos censos de 2021, residem em Portugal cerca de 7500 paquistaneses, uma comunidade imigrante que está longe de ser maioritária. São o 19.º grupo no ranking da imigração. Sentados ao redor de uma mesa à sombra, Hassan Ali explica como chegou a Portugal em março deste ano. Era a primeira vez que se aventurava pelos caminhos da emigração. À procura de melhores condições de vida, atravessou meio mundo para aqui chegar, num caminho que tardou cerca de três meses a percorrer. “Éramos um grupo de cem pessoas e fomos detidos na Sérvia”, descreve. Enfiado numa cela durante dois meses, denuncia ter sofrido espancamentos. O pai havia recomendado que escolhesse Portugal como destino por ser mais fácil obter residência. Mohammed Hussein diz que esteve detido nove meses na Grécia e que também foi objeto de agressões por parte da polícia local. É o mais novo de todos. Tem apenas 23 anos. Critica a política transfronteiriça da União Europeia.

Todos estes homens trabalham juntos. Ou tentam. Gostam do nosso país e dos portugueses, que consideram ser afáveis e acolhedores. Pelo menos na Azinhaga. O único problema são os patrões portugueses. Muhammad Hussain está já há três anos em Portugal. Como os restantes compatriotas, chegou a esta terra através do Martim Moniz, em Lisboa. É aqui que a rota migratória desemboca para procurar trabalho e construir uma vida melhor. Tem três filhos no Paquistão e gostava de um dia conseguir ter a família a seu lado. Mas não é fácil. Queixam-se da instabilidade laboral e do trabalho ilegal. 

Nalguns casos, como conta Hassan Ali, trabalham sem qualquer contrato. Noutros, assinam contrato mas depois acabam por descobrir que a empresa retirou o dinheiro correspondente aos descontos mas não o entregou à Segurança Social, como denuncia Shazad Ali. Por sua parte, Gopi revela que dormem em casa de um paquistanês que vive há vários anos na Azinhaga e sublinha que também aqui a habitação é um problema. 

Mas o problema maior, referido por todos, e como descreve Waqass Ahmad Sadiqi, de 40 anos, é a falta de estabilidade. A empresa não lhes dá trabalho diário e, apesar de considerarem que não é mau receberem 40 euros por jornada, estão semanas inteiras sem trabalhar e, por isso, sem receber. Nesses dias, ficam deitados e dormem o mais que podem para não gastarem energia.

Impunidade na exploração de imigrantes

Um dos dados mais usados nos últimos anos para evidenciar a importância dos trabalhadores imigrantes é o papel que assumem na estabilização das contas da segurança social. À Visão, Catarina Reis Oliveira, diretora do Observatório das Migrações, explicava, no fim de 2023, que os estrangeiros têm 87 contribuintes por cada 100 residentes, enquanto os portugueses têm apenas 48. Por outro lado, os estrangeiros têm 38 beneficiários de prestações sociais por cada 100 contribuintes, enquanto para o total de residentes a relação é de 79 beneficiários por cada 100 contribuintes.

À mesma publicação, Catarina Reis Oliveira sustentava que os relatórios estatísticos mostram que os imigrantes assumem um papel “fundamental” na eficiência dos mercados de trabalho, sendo claro que “sem os imigrantes alguns setores económicos e atividades entrariam em colapso”.

Mas a relação entre trabalhadores imigrantes e empresários nem sempre é a mais fácil, que se aproveitam frequentemente da falta de conhecimento relativamente a direitos laborais e à gestão burocrática da sua situação contributiva e fiscal. Por exemplo, apesar dos baixos salários, muitos não sabem que se tiverem morada fiscal fora de Portugal podem comprovar por escrito que prestam serviço a um único patrão para terem a dispensa da retenção na fonte, no caso de ganharem o salário mínimo, uma informação veiculada recentemente pela Autoridade Tributária no Portal das Finanças.

Diogo Lopes é o coordenador, em Santarém, do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Agricultura e das Indústrias de Alimentação, Bebidas e Tabacos (SINTAB). Conhece bem os casos de exploração contra trabalhadores estrangeiros.
“Há uma empresa de prestação de serviços com vários armazéns de frangos na região que usa imigrantes para a apanha de frangos para encherem os camiões. Estes trabalhadores recebem cerca de dois ou três cêntimos por cada frango que apanham”, denuncia. “Fica na zona de Rio Maior. Eles têm um chefe de equipa que contabiliza o que eles recolhem. Cada caixa leva um determinado número de frangos e eles contam depois as caixas. É assim que são pagos”.

Segundo o sindicalista, também “não recebem equipamentos”, “os pavilhões não estão limpos” e os trabalhadores andam no meio dos frangos, “onde também há frangos mortos à mistura”. Diz que é um trabalho “muito difícil” e que recebem uma “miséria”. Também neste caso, há vários imigrantes sem contrato e sem descontos para a Segurança Social. “Não têm sequer um seguro de trabalho”.

Reconhece que há cada vez mais trabalhadores asiáticos e os empresários se aproveitam dos imigrantes para pagar “muito menos”. Diz que se fossem trabalhadores portugueses não se sujeitariam a tais condições. “Os patrões fazem isso para obter mais lucros”.

Ainda no caso da agricultura, afirma ter conhecimento de imigrantes que têm de pagar o arrendamento do lugar onde dormem e o transporte para o local de trabalho à pessoa que os emprega. “Acabam por receber muito menos do que o salário mínimo e vivem 10 ou 20 trabalhadores em cubículos sem condições”.

O facto de serem imigrantes fragiliza-os e torna-os presa fácil das empresas mas, simultaneamente, também torna difícil a intervenção dos sindicatos. Apesar de contatar com estes trabalhadores, Diogo Lopes explica que é “muito difícil” fazer trabalho sindical junto dos imigrantes. “Entregamos panfletos em inglês mas muitos têm medo de represálias. Tentamos alertá-los para os seus direitos porque têm os mesmos direitos que nós”.

Em abril, o SINTAB alertava para a situação destes trabalhadores e apontava o dedo à falta de fiscalização por parte das autoridades. “Entendemos que estas decisões [a extinção da secretaria de Estado das Migrações e a falta de resposta da Agência para a Integração, Migrações e Asilo e do Instituto dos Registos e do Notariado], tendo motivações meramente políticas e não havendo explicação prática que o valide, se assumem claramente como um contributo dos governantes para a manutenção da situação precária destes trabalhadores que, ao não conseguirem regularizar a sua situação, se vêm obrigados a aceitar condições sub-humanas e ilegais de trabalho e habitação, favorecendo assim os patrões que não hesitam em aprofundar a exploração de quem trabalha”, descrevia num comunicado este sindicato. “O Estado e as instituições públicas não podem estar do lado de quem explora os trabalhadores, e muito menos de quem acentua essa exploração em função das fragilidades sociais”.

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