No Hospital Curry Cabral, uniram-se e venceram. Disseram basta e obrigaram a empresa Sá Limpa a abandonar este polo hospitalar. Não querem ser invisíveis e exigem respeito. São mais de 60 mil em todo o país e são sobretudo mulheres. Baixos salários, trabalho precário, horários desregulados, abusos por parte das chefias e racismo são algumas das muitas denúncias de quem trabalha na limpeza. 

A revolta das esfregonas

Podia ser apenas uma tarde como tantas outras mas algo extraordinário estava para acontecer no Hospital Curry Cabral, em Lisboa. Mulheres de vários serviços, vestidas com a farda da limpeza, largaram as esfregonas e decidiram que aquele dia ia ser delas. Rapidamente se espalhou a notícia de que a empresa Sá Limpa queria despedir três das suas colegas, uma com cancro e outra com uma doença crónica.

Decididas a confrontar o administrador que abandonava aquele polo hospitalar, encontraram-no já dentro da viatura a caminho da saída. Entre vozes de revolta, uma das muitas mulheres deixou a ameaça no ar: “Se não nos ouvir, viramos-lhe o carro”. Não havia volta a dar. Dali a pouco, este membro da direção recebia representantes do sindicato e as trabalhadoras juntavam-se em plenário para decidir uma greve. Um dia sem esfregonas para defender as três colegas que iam ser despedidas. Porém, isso era apenas a gota de água de todas as queixas de abusos da empresa sobre cada uma delas.

Trabalhadoras em greve à porta do Hospital Curry Cabral

No dia 7 de dezembro, a porta principal do Curry Cabral amanheceu em festa. Engana-se quem acha que é só de tristeza que a luta se trata, pareceram querer dizer à Voz do Operário várias trabalhadoras despertas pela alegria de se sentirem mais fortes por estarem unidas. 

Uma delas, Carla, mãe solteira com um filho de cinco anos, denunciou a recusa por parte da empresa em conceder-lhe um horário flexível, como prevê a legislação para pais de crianças com menos de 12 anos. “A supervisora disse-me que não, que não ia permitir que uma trabalhadora de enfermaria entrasse às 9 e saísse às 5. Disse-me para pedir transferência ou meter baixa”. 

Entre consignas de protesto, houve tempo para dançarem abraçadas ao som do funaná de Ferro Gaita e para conhecerem colegas de outros hospitais que não quiseram deixar de trazer a solidariedade a uma luta que também é sua. Teve tal impacto esta greve que logo decidiram marcar outra. Não chegou a acontecer. A empresa Sá Limpa abandonou o Hospital Curry Cabral e foi substituída por outra.

Tratados abaixo de cão

Nas limpezas do Hospital São José, Ricardo Inocêncio ouviu tudo o que lhe contaram sobre a luta das colegas do Curry Cabral. Aqui, ainda é a Sá Limpa que gere os trabalhadores que fazem com que este polo hospitalar esteja limpo todos os dias. “A luta delas foi um exemplo. Foram mais unidas do que as colegas de São José. Às vezes, as trabalhadoras africanas têm medo de fazer greve, muitas não sabem ler nem escrever e têm medo, são ameaçadas. E no Curry Cabral não se passou isso. As colegas juntaram-se todas e parou tudo”, afirma à Voz do Operário.

De facto, a presença de trabalhadoras afrodescendentes e imigrantes tem um grande peso no setor da limpeza. Para Ricardo, os chefes “pensam que podem fazer tudo o que querem e lhes apetece” e denuncia que uma supervisora que acaba de ser transferida para outro hospital “fazia atos racistas com as trabalhadoras negras, tratava-as abaixo de cão”. Segundo este trabalhador de 42 anos, “insultava-as e gritava com elas”, uma “pouca vergonha”, considera.

Entrada da urgência do Hospital de São José

Ricardo trabalhava para uma empresa portuguesa na Bélgica e teve de abandonar o país com a pandemia. De regresso a Portugal, agarrou-se ao primeiro emprego que encontrou. Mas diz que não é fácil. Com três filhas e uma companheira desempregada, faz uma hora e meia todos os dias de viagem na linha de Sintra para conseguir um mísero salário. “É só o meu dinheiro a entrar em casa e sinto-me cada vez mais com a corda ao pescoço”, confessa. “Eu vivi bem quando trabalhava no estrangeiro e tinha bons ordenados. Já vivi bem e, atualmente, apenas sobrevivo”. Explica que ganha cerca de 720 euros e que paga 380 de renda, fora a água, a luz, a comida, os transportes e a internet.

Há um ano a trabalhar no São José, já provou muitas das agruras de quem exerce o ofício de limpar o lixo hospitalar. “A outra supervisora, se se lembrasse que havia mais alguma coisa para fazer à hora de saída, obrigava-nos a ficar. E se não ficássemos cortavam-nos no salário como me chegou a acontecer”, descreve. Agora considera que o ambiente melhorou um pouco mas as queixas são muitas. No mesmo dia em que fala com A Voz do Operário, houve um colega “com um problema de costas” que se recusou a levantar pesos e “foi mandado para casa” pelas chefias. “O senhor recusou porque tem uma hérnia nas costas. Trabalhava na Maternidade Alfredo da Costa, onde limpava janelas e paredes. Aqui, foi posto a carregar lixo”, explica.

Para além de denunciar a falta de substituição de fardamento para trabalhadores que lidam diariamente com “doenças e infeções”, Ricardo Inocêncio enuncia também alguns dos problemas denunciados por quem trabalha neste setor em diferentes empresas. Repetidos enganos no pagamento do salário, cobranças de despesas administrativas que não entende e falta de recibos. 

“Cinco da matina”

Há 20 anos que não dorme mais do que quatro horas por noite. Por cautela, prefere não dar o nome verdadeiro. Para esta reportagem, decidiu batizar-se como Ana Maria. Algures em África, quando era jovem, tinha um sonho. Ser investigadora criminal. Mas o mundo não é igual para todos e Ana Maria é mais uma nesse enorme exército de mulheres e homens que limpam tudo aquilo que todos sujamos. Com seis filhos, esta mulher solteira veio para Portugal à procura de melhores condições de vida e o que encontrou foi uma vida de exploração.

Em todos os dias em que trabalha, a luz do seu apartamento na linha de Sintra acende-se às 5.30 da manhã. Às 6.22, apanha o comboio para entrar na PT, em Picoas, às 7. Duas vezes por semana, sai desta empresa às 10 para trabalhar numa casa particular em Alfragide às 11. Dali, sai às 15 para entrar no Centro Comercial Colombo às 16 e sair à meia noite. De volta ao comboio, abre a porta de casa às 00.25.

“Geralmente deito-me à 1.20”, diz Ana Maria. Não o faz porque quer mas porque tem uma casa para pagar. “Tenho de pagar o empréstimo ao banco, tenho de pagar o seguro e o condomínio. Se eu estivesse a receber um ordenado como deve ser, não tinha de me sacrificar tanto. Todos os meses tenho de ter 500 euros na conta. É a água, a luz, a internet, a comida, o passe”, descreve. Os filhos, já adultos, vivem todos no estrangeiro. “Graças a deus”, afirma.

“Cinco da matina/ Já todos caminham pr’ó mesmo enredo/ Porque nos subúrbios/ O sol levanta-se sempre mais cedo/ É um povo escravizado nesta sociedade de extremos/ Trabalham duas vezes mais e ganham duas vezes menos” 

Valete (rapper)

Sozinha repete uma rotina com mais de duas décadas. Trabalha para a empresa AMG no Colombo e diz que ali fazem um pouco de tudo: recolher tabuleiros, limpar o chão, lavar as casas de banho. Como Ricardo Inocêncio, também denuncia a forma como são tratadas pelas supervisoras. “Elas gritam com a gente. A voz da chefe quando vem falar connosco fica alterada como se fossemos crianças e às vezes também temos de nos alterar”, confessa. A maioria das trabalhadoras são mulheres estrangeiras. “Aproveitam-se do facto de sermos imigrantes. Há poucas brancas porque não aguentam. Nós aguentamos porque temos despesas para pagar. São muitas horas e horários complicados”, explica.

Centro Comercial Colombo // Foto: Daniel

Ana Maria é já uma veterana nesta guerra da limpeza. Com um problema no ombro, enviou uma carta à empresa a dizer que não podia fazer trabalhos pesados mas a AMG “não quer ouvir falar de cartas”. Tem uma tendinite e uma infiltração no braço mas não tem alternativa. “Os meus braços já não são o que eram mas preciso de ganhar dinheiro para pagar as contas”.

Outra das queixas é não saberem quanto vão ganhar ao fim do mês. Trabalham quatro dias e fazem duas folgas mas nunca há certezas sobre quanto vai cair na conta. “Quando chega o fim do mês temos de ficar atentas para saber se vamos receber corretamente. Às vezes vamos ver e é uma miséria. Eles inventam descontos, acertos de horas, entre outras coisas”, explica. “Nós ligamos para os escritórios da empresa no Porto e dizem-nos para falarmos com a supervisora aqui em Lisboa, nós falamos com ela e ela diz para ligarmos aos escritórios. É um empurra para aqui, um empurra para ali, para sabermos quanto é que vamos ganhar. Eu nunca sei quanto é que vou ganhar”.

O facto é que Ana Maria diz que as cerca de 200 trabalhadoras têm de registar a entrada e a saída mas não há maneira de saber quanto vão ganhar em cada mês. “Eu fui à advogada do sindicato que me disse que tinha muito para receber. Depois falei disso à supervisora, ameaçámos com um advogado e ela disse-nos para não fazermos isso, para deixar estar, que víamos isso melhor”, recorda. “Quando dissemos isso, ela mudou totalmente de discurso”.

Hoje, olha para a sua vida e sente muita injustiça. “Sinto, sinto muita porque estamos aqui a trabalhar e queremos um ordenado como deve ser. Queremos chegar ao final do mês com o nosso salário como deve ser”. Mas também gostava de ser menos invisível. Para o resto do mundo, as trabalhadoras da limpeza parecem não importar. “Somos invisíveis para os clientes. Não somos nada bem vistas. Os clientes têm sempre razão. Nem que nos insultem e nos tratem mal temos de continuar a trabalhar. Acontece muito.”

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