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Não há unicórnios grátis

Nunca em Lisboa se sentiu tanto: vivemos hoje entrincheirados numa longa-metragem de ficção pós-industrial.

fábrica de unicórnios nunca foi uma piada de mau gosto. Para quem desconhece o universo “startupeiro” a referência do Moedas a estes seres fantásticos poderá ter parecido um delírio. Um espécie de Adamastor versão Ursinhos Carinhosos. Mas este episódio foi apenas a tradução fantasmática da doutrina de choque produzida por um conjunto de políticas urbanas de Lisboa no séc. XXI. Estas caracterizam-se pela conciliação de um mundo de ludicidades, marketing e faz de conta com o desenvolvimento de economias gig, indústrias do ócio, big techs e atração de elites internacionais, num grande para repasto transnacional a la Vale do Sicílio. 

Porém, o que também nunca se sentiu tanto em Lisboa é que este Vale do Silício série B está mais próximo de um Vale do Suplício. Em torno da desregulação do mar urbano, motivada pela criação de ilhas do investimento e da especulação agressiva, uma maré-alta de espoliados se levanta sobre a cidade.

Enquanto aumenta em 25% a população sem-abrigo na região de Lisboa neste ano, a pressão imobiliária empurra inúmeros municípios a despejos sucessivos sem garantir alternativa habitacional aos moradores. Em janeiro, foram despejadas oito famílias que viviam na Charneca (Alta de Lisboa) sem terem uma alternativa consistente e digna. Em fevereiro na Rua 25 de Abril, em Corroios, cerca de 20 pessoas foram despejadas apenas com o apoio de um mês de renda e um mês de caução da Segurança Social. Nos dois últimos meses, cerca de duas dezenas de famílias viram as suas habitações demolidas sem aviso prévio nos bairros do Zambujal e Montemor em Loures. A mesma situação de expulsão sumária ocorreu com famílias no Monte da Caparica em Almada, no Casal da Mira e no Casal de São Brás na Amadora. Neste mês, no Bico do Mexilhoeiro (Barreiro), a Câmara Municipal não apenas destruiu 10 casebres de pesca, como também uma moradia. O mesmo acontece agora com o acampamento da Quinta dos Ingleses junto à praia de Carcavelos, sem resposta adequada das respetivas câmaras. Esta é apenas uma ínfima parte de um problema estrutural que assola as periferias urbanas e, sobretudo, as populações imigrantes e racializadas.

Ao mesmo tempo, Lisboa perde 3 mil casas na última década (invertendo o aumento de 34 mil casas entre 2001 e 2011) e o alojamento local ronda os 30% nas freguesias centrais. Surgem reflexos da ausência de soluções para a variação em alta do preço da habitação. Cresce a concentração de pessoas nos acampamentos na Estação do Oriente, em Santa Apolónia, na Quinta do Loureiro, no Regueirão dos Anjos e crescem também as estratégias de sobrelotação habitacional (belichização de cómodos, tapumes, cama quente, residência em estabelecimentos comerciais, etc). Segundo o relatório da Social Equity Iniciative de 2023, cerca de 20,5% da população pobre em Portugal vive em habitação sobrelotada. Um pouco por toda a parte a via pública torna-se em moradia e a moradia torna-se num microbairro. E, no meio disto, cresce também a politização das soluções. Setenta migrantes ocupam uma Torre em Paço de Arcos, cujas obras estavam embargadas há mais de uma década e resistem a várias investidas policiais. O famigerado acampamento do Jardim António Feijó (Anjos), ao contrário do que as narrativas do coitadismo e da ameaça podem supor, torna-se hoje num espaço da denúncia imigrante da negligência do Estado português com a população indocumentada.

A direita portuguesa, perante a situação, trabalha os bíceps e veste o colete à prova de balas. Apressa-se a chamá-la “gentalha”, “classe perigosa” e acena com a Grande Substituição. Mas a verdade é que a cidade precisa dela como de pão para a boca. A alimentar a ficção fofa desta “Nova Lisboa” há um contingente brutal de força de trabalho que só pode existir, na ótica neoliberal, se precarizado, uberizado, terciarizado, flexibilizado e, no limite, escravizado. Há um mundo a servir de bandeja às elites internacionais que estão a recrutadas, bem como os seus investimentos, através de sucessivas políticas de excecionalidade – os vistos gold, o Regime dos Residentes Não-Habituais, a Lei dos Nómadas Digitais ou a Lei da Nacionalidade para Descendentes de Judeus Sefarditas. Mas se as elites globais são recebidas por um particular Estado de graça, os pobres são cada vez mais recebidos pelo Estado penitenciário.

A crise económica de 2008 não foi suficiente para o arco governativo perceber que a desindustrialização pura e dura era o abismo. Dos escombros da intervenção da Troika nasce um conjunto de novas políticas que tomam a Área Metropolitana de Lisboa como o seu laboratório. Um conjunto alargado de políticas gestadas durante a intervenção da Troika foi o seu laboratório. Estas passam por políticas de flexibilização (como o Novo Regime do Arrendamento Urbano e o Empresa na Hora) por políticas de inadvertência programada (como a inoperância perante a expansão do alojamento local, o colapso dos serviços de regularização migratória ou a política de baixo salário) e por políticas de excecionalidade destinadas a atrair elites internacionais (os vistos gold, o Regime dos Residentes Não-Habituais, a Lei dos Nómadas Digitais ou a Lei da Nacionalidade para Descendentes de Judeus Sefarditas).

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