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Participação, o parente pobre da nossa democracia

Depois de um conturbado processo desconhece-se que futuro dará o executivo de Moedas ao Martim Moniz.

Há dias perguntavam-me se conhecia os resultados do processo participativo do Martim Moniz. Com o andar da conversa fui percebendo que havia grande preocupação e desconhecimento sobre o que o novo executivo municipal pretenderia fazer naquele território e uma certa estranheza pelo facto de não haver dinâmica social para defender a implementação do que teria sido determinado pelo referido processo participativo. Mais recentemente, a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior anunciou a apresentação do seu projecto, ignorando o anterior processo participativo de que também havia sido promotora. Do muitíssimo mediatizado processo participativo do Martim Moniz, poucos conhecerão os resultados e muito menos encontrarão motivos para defender os seus resultados.

Em Portugal muitos processos participativos continuam a ser floreados para quem toma as decisões urbanísticas e de construção de cidade. Com a participação, decidem-se canteiros, umas mesas e cadeiras, mas quando toca a estruturar as cidades ou as principais políticas urbanísticas, decisores políticos (e, tantas vezes, técnicos) não querem deixar de exercer o poder para o qual se sentem legitimados. Diz-se que a decisão final é da Câmara Municipal sem que se perceba que, em democracia, a decisão final é nossa. A democracia não se exerce, exclusivamente, no fim de ciclos eleitorais e num sistema representativo não se delegam todas as decisões em quem é eleito. Entre eleições, as pessoas também querem fazer parte das respostas e das discussões e a opinião do decisor político ou técnico, não esgota as soluções nem se deve sobrepor à do povo.

“Entre eleições, as pessoas também querem fazer parte das respostas e das discussões e a opinião do decisor político ou técnico, não esgota as soluções nem se deve sobrepor à do povo.”

Vivemos um momento histórico em que as pessoas reivindicam, cada vez mais, o seu direito a participar nas decisões mais estruturantes da construção da cidade de Lisboa. Esse direito também é cada vez mais reconhecido por autarcas que, independentemente da força política (excepção feita à extrema-direita que vive da infantilização da opinião popular), apresentam-se a eleições com modelos, iniciativas e o anúncio de práticas participativas. No entanto, continuamos a ter poucos exemplos de boas práticas e muitos exemplos de embustes.

Entendamo-nos quanto aos problemas. Os modelos participativos que resultam exclusivamente dos instrumentos de gestão de territórios em vigor – PDM, Planos de Pormenor ou Urbanos – estão, no essencial, caducos. A sua concepção está vocacionada para a defesa de direitos individuais e não para a ideia de comum ou de interesse público. Os momentos de discussão estão excessivamente carregados de tecnicidades, que os torna inacessíveis à maioria da população, e são activamente burocratizados para auto-proteccção de decisores políticos e técnicos. Não servem. Mas também não se pense que um melhor modelo nascerá por decreto. Importa desenvolver boas práticas, avaliar e retirar conclusões para desenhar outros modelos. Por outro lado há quem nos apresente como novo a ideia de um Senado de cidadãos independentes, livres de compromissos, como se o vazio fosse possível ou desejável. Tal como uma ágora grega, esse jamais será o espaço de todos, mas apenas de alguns, bem pensantes, consoante o que se pretenda. Se, no primeiro caso, o controlo é estabelecido a partir da forma dos objectos a discussão e do controlo sobre os dados, no segundo caso, o controlo é garantido a partir da ideia de cidadão determinada de cima para baixo.

A minha opinião é que a construção de bons modelos participativos implica, em primeiro lugar, uma mudança de pressupostos. O decisor político, e técnico, tem de pensar que a boa organização de um processo participativo faz parte das suas obrigações – não de um direito que pode, ou não, conceder – e deve garantir que as determinações decorrentes do processo são implementadas ou testadas de forma célere (é daí que emergem os conceitos de urbanismo tático ou placemaking). A população deve sentir que desaparece o “eles” dos decisores e que se constrói um “nós” pelo qual todos somos responsáveis.

Ora esse “nós” não resiste por muito tempo se cada um regressar sozinho a casa, à sua individualidade. Um processo participativo, para criar lastro, para que as suas dinâmicas se mantenham, aprofundem e ganhem massa crítica, deve valorizar a constituição ou reforço do associativismo, da cooperação, ou seja, da organização livre, pelas mais diversas razões, das populações. O Estado deve estar preparado para contribuir para a consolidação e fortalecimento dessas organizações e para, quando daí resultar manifesto interesse público, delegar competências e responsabilidades.

A democracia constrói-se todos os dias e colocamo-la em risco sempre que aceitamos concentrá-la num momento eleitoral, de quatro em quatro anos, em que se elegem os nossos representantes.

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