Exemplo disso é “O Criado”, filme de 1963, com argumento de Harold Pinter, centrado na relação entre patrão e criado. Até que ponto aquele que é o patrão se torna ele no dependente e submisso? O acontece quando temos alguém que manda e outro que obedece?
Barrett, o criado, chega a uma casa que acabou de ser vendida. O novo dono, Tony, dormita numa das divisões vazias. O olhar complacente e o silêncio Barrett convencem Tony. O criado entra ao serviço, ajuda nas obras em curso e antecipa problemas. É eficiente – o jovem dandy Tony precisa. Susan, namorada de Tony, não gosto do criado. Parece ser uma questão de estatuto, e ciúmes da proximidade que Tony tem com o criado. Susan não quer viver naquela casa, e afasta-se do namorado.
As dinâmicas de poder adensam-se. O criado faz tudo o que o patrão quer, e começamos a desconfiar de tão sólida submissão. É então que o criado vai a uma cabine telefónica ligar a Vera. À espera para telefonar está um grupo de mulheres impacientes. Quando Barrett sai, insulta uma delas. Há nesta cena qualquer coisa de inquietante nos planos escolhidos por Losey: os rostos das mulheres distorcidos pelo vidro da cabine, os planos das pernas e a violência com que o criado as trata. Tony precisava também de uma criada e Barrett chama a suposta irmã para ajudar. A relação dos dois criados-irmãos é estranha. Vera seduz Tony da primeira vez que lhe serve o pequeno-almoço. Se o criado seduz pela eficiência e submissão, a criada seduz pelo desejo.
Mesmo não conhecendo o passado daqueles dois, percebemos que foram para aquela casa como trabalhadores: servem, limpam e arrumam, fazem o que Tony se recusa a fazer. Por outro lado, Tony é consequência do meio em que cresceu: nunca precisou de trabalhar. As posições de poder vão-se que alternando e alterando, na manhã em que Vera passa um limite, e decide tomar banho na casa de banho do patrão. Barrett finge que a vai tirar de lá, espera que Tony saia, e faz o oposto: desforra-se e pede à “irmã” que o banhe com água de colónia. Vingam-se da ostentação de Tony, gozando daquilo a que não têm acesso.
Os explorados e os exploradores: quem é quem?
A partir daqui é clara a intenção oculta dos criados: cuidar da casa, e aproveitar-se de Tony. Vera passa a dormir com Tony, impulsionada por Barrett. O esquema está montado: Tony fica “enfeitiçado” por Vera, os criados começam a dispor da casa como bem entendem. A relação com o patrão é agora de igual-para-igual.
Susan reaparece, exerce o seu poder de classe sobre Barrett, dando-lhe de ordens, pelo simples prazer de um ver submisso. A cena é uma crítica ao poder de uns sobre os outros; mas é também aqui que Susan conclui que existe mesmo alguma coisa estranha: “O que é que você quer desta casa?, pergunta ao criado, sem obter resposta. Tony e Susan reaproximam-se, e encontram Vera e Barrett no quarto de Tony como se fossem os donos da casa. Como dois intrusos, ficam na semi-penumbra das escadas, a espiar os criados. Quando Barrett e Vera percebem, revelam que são noivos, e sem pedir desculpa vão-se embora.
Tony perde o controle da situação: está demasiado dependente de Barrett. Sozinho, não consegue tratar de si nem da casa. Barrett encontra Tony deprimido num bar, e é ele oferece uma bebida ao patrão, dizendo que se sente sozinho sem ele. Reconciliam-se. E a relação muda: Barrett revolta-se, e pede Tony que o ajude. Quem manda agora é o criado, que continua a arrumar – mas não como antes. Faz o que quer, sente-se livre, e abusa dessa liberdade, perante a apatia e submissão do patrão. As nossas as perguntas continuam quando o filme termina: Afinal o que se passa entre Tony e Barrett? Quais as motivações do criado? Eram já estas as suas intenções quando chegou aquela casa?
Losey, cineasta interventivo e resistente
Joseph Losey, cineasta norte-americano, exilou-se na Europa, devido às perseguições políticas de que foi alvo. Em 1935, tinha já visitado a Rússia, onde estudou encenação e participou num seminário de cinema com Eisenstein. Foi em Moscovo que conheceu Bertold Brecht e o compositor austríaco Hanns Eisler. Serviu pelo exército americano na II Guerra Mundial, mas dissertou em 1945, e foi trabalhar com Brecht e o actor Charles Laughton em “Galileu”. Brecht voltou para a Europa, e Losey assumiu o seu lugar como encenador na peça. Nestas décadas, manteve contacto com os movimentos de esquerda, aderindo ao Partido Comunista em 1946. Dois anos depois, consegue realizar a sua primeira obra, “O Rapaz do Cabelo Verde”, alegoria política sobre um órfão de guerra que acorda um dia com cabelo verde, e é ridicularizado pelos outros.
Afastado de Hollywood pelas suas convicções políticas, vai para Itália, onde trabalha no filme “O homem que o mundo esqueceu”. Em 1952, regressa aos Estados Unidos, não consegue trabalho e volta a emigrar. Fixa-se em Londres, e realiza filmes de vários géneros sob pseudónimo, até conhecer Harold Pinter. É o início de uma longa colaboração e amizade entre ambos. Pinter escreve “O Criado”, “Acidente” (1967), e “O Mensageiro”, vencedor da Palma de Ouro em 1971. As três obras traçam um olhar sobre a luta de classes e a sexualidade em Inglaterra; são marcados pelos diálogos elípticos, uma densa construção cinematográfica e um inovador trabalho de câmara.
Um ano antes de morrer, Losey confessa numa entrevista não se sentir triste por ter sido colocado na lista negra do macarthismo: não se podia deixar encurralar pelo dinheiro e pela complacência. Morre em 1984, em Londres, sempre na esperança de aparecer o projecto certo que o levasse de regresso ao seu país natal.