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Cornucópia: memórias de um teatro de resistência e intervenção cultural 

A 26ª edição do Doclisboa, Festival Internacional de Cinema, deu a conhecer “Memórias do Teatro da Cornucópia”, novo documentário de Solveig Nordlung sobre uma das mais importantes e emblemáticas companhias teatrais dos últimos anos do nosso país.

O grupo, criado em 1973 por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, surgiu como uma lufada de ar fresco no sombrio panorama fascista, apesar da censura e das limitações orçamentais. A missão interventiva continuou depois da revolução de Abril, com obras e encenações inovadoras, que pretendiam o questionamento, por parte do espectador, do seu lugar individual e colectivo na sociedade.  

O filme tem como base fundamental as imagens que o Teatro da Cornucópia registou ao longo de 43 anos de actividade. A realizadora sueca naturalizada portuguesa fez parte da companhia, e sabia da existência deste manancial histórico valioso. Passou muito tempo a ver todo o espólio, guardado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, para fazer uma escolha criteriosa do material fílmico, e assim contar a história mais ou menos cronológica desta instituição, então sediada nas instalações do actual Teatro do Bairro Alto, em Lisboa. 

O mentor Luís Miguel Cintra

O fio condutor de “Memórias do Teatro da Cornucópia” é o actor e encenador Luís Miguel Cintra, sobretudo através de uma narração que traça esse percurso de resistência e militância cultural e política. Os objectivos eram claros desde a sua criação. Como o “teatro é o tempo fora da vida. Na minha cabeça, fazer um espectáculo era estar a inventar uma brincadeira entre nós. Fazer a Cornucópia não foi apenas por razões profissionais. Era a busca da felicidade., ouvimos logo no início do filme. 

Estávamos perto do 25 de Abril de 1974. Na altura, as companhias mais activas eram universitárias; mas também os seus textos e encenações eram controlados pela PIDE/DGS. A Cornucópia foi a tentativa de rasgar ainda mais com a opressão vivida pelos elementos destes grupos. Queríamos estarmos juntos, e para isso não havia limites. As nossas cabeças eram muito mais livres., destaca Cintra. 

Deu-se a revolução. Em liberdade, era prioritário prosseguir com os objectivos progressistas e de vanguarda. Era urgente representar Bertold Brecht, por exemplo. “O Terror e a Miséria do III Reich” foi, por isso, a primeira peça que a companhia levou à cena após a conquista da liberdade. “Interessava-nos fazer peças que eram o pensamento da pequena burguesia.” “Os pequenos burgueses” e “Tambores na Noite”, também do dramaturgo alemão, foram representadas nos dois anos seguintes. Textos de autores como Heiner Muller, Jean Genet, Federico Garcia Lorca, Pier Paolo Pasolini, Arthur Schnitzler, Heinrich von Kleist e Edward Bond, nunca ou raramente apresentados em Portugal, fizeram parte do repertório da companhia. A missão da Cornucópia era clara. “Ter um repertório pertinente que tinha a ver com o que as pessoas estavam a viver.” 

Com o passar dos anos, os hábitos foram mudando, “as pessoas fecharam-se em casa.” Era preciso remar contra a maré. “Isso era uma questão fundamental. A grande prisão é a vida em que a gente está metido. Eu era completamente leal em relação ao público. Mas nem sempre o público compreendia a escolha do reportório.”

 Jorge Silva Melo saiu. Cristina Reis tornou-se um elemento pilar para a organização desta estrutura teatral, sobretudo na concepção plástica e cenográfica de cada espectáculo. Como sucede com muitos teatros e associações de cariz cultural nacionais, o percurso da Cornucópia foi de altos e baixos. Isto é ainda mais relevante num grupo que primava pela experimentação, inovação e ousadia criativa. Uma questão mantinha-se: Como é que se que relacionavam o palco e uma peça com o público? Ouvimo-la numa das conversas entre actores e técnicos que o filme mostra. “É importante que uma companhia funcione como um ser vivo, e que funcione assim com o público., lembra o criador Cintra. E acrescenta: Eu queria muito experimentar o espaço. O importante era o trabalho do espaço. Um espaço que recebe, acolhe e é trabalhado como se deseja. O teatro independente torna-se resistência física e emocional.” 

O fim de uma era. Mas… o teatro continua.

Passaram centenas de actores pelo Teatro da Cornucópia ao longos das suas mais de quatro décadas, ainda que fosse importante a existência de um núcleo fixo de profissionais. A Cornucópia provou que é possível juntar pessoas de gerações diferentes. “Nisso fomos diferentes da maior parte dos grupos.”, sublinha o encenador e actor sobre os primeiros tempos. 

Sem condições de índole orçamental que permitissem prosseguir com a sua missão, a Cornucópia representa pela última vez na sua “casa” em 2016. Luís Miguel Cintra escolhe o emblemático “Hamlet”, de William Shakespeare. “Ser actor é ser um artista criador. É tão criativo como ser escritor ou ser pintor.  Acima de tudo, o teatro é um acto de sedução.” 

Um ano depois, o Teatro da Cornucópia fechou definitivamente as portas. Vazio de adereços, guarda-roupa e mobília. “Foi como um funeral. Eu tinha a noção que tinha perdido toda a minha vida naquele sítio.” Ficaram os testemunhos de Luís Miguel Cintra e Cristina Reis, e as imagens multifacetadas atentamente escolhidas por Solveig Nordlung das peças representadas pela companhia, de reuniões de trabalho entre actores, e registos de momentos de experimentação e concepção dos espectáculos. O Teatro da Cornucópia representou 127 criações, dando destaque a textos portugueses e a uma visão revolucionária não institucionalizada no tratamento da dramaturgia, do lugar do teatro e da arte. Ficamos à espera da estreia nacional em todas as salas do país deste filme homenagem de Nordlung às “Memórias do Teatro da Cornucópia”.  

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