O cenário de “Killer Joe” é caótico, reflexo de quem o habita. Estamos na autocaravana dos Smith, no Texas, início dos anos 90 do século passado. A peça que esteve em exibição no Teatro São Luiz, em Lisboa, pela mão do colectivo Urso Pardo, encenada por Miguel Graça. Escrita em 1991 pelo dramaturgo e actor norte-americano Tracy Letts, reflecte o vazio de pessoas que lutam desesperadamente por qualquer coisa na vida, mesmo que nada à sua volta pareça fazer sentido. O caminho mais fácil é o do dinheiro, reflexo de uma sociedade desumana e materialista. Trata-se de um texto cruel, com momentos de humor, que teve em 2011 uma adaptação cinematográfica pelas mãos de William Friedkin (realizador de “O Exorcista”, em 1973).
Chris (David Esteves), o filho mais velho, tem um plano. Soube da existência do seguro de vida da mãe. A mãe sempre teve uma relação conflituosa com ele; por que não matá-la? É isso que propõe a Ansel (Pedro Caeiro), o pai. Fala-lhe de Joe (Dinarte Branco), o xerife assassino. Esta passa a ser a investida de ambos, envolvendo a filha, Dottie (Madalena Almeida), e a madrasta e nova mulher de Ansel, Sharla (Inês Pereira). Estas pessoas não têm nada a perder, perante um mundo que as oblitera. São uma família disfuncional, a violência e a agressividade imperam entre eles, como se fosse a sua forma de amar.
Joe aparenta serenidade e frieza. Fará o que tem a fazer, e não dará muitos detalhes aos Smiths, mas quer uma caução, já que estes estão a contar com o valor póstumo do seguro: Dottie, que ficou traumatizada desde que a mãe, em criança, a tentou matar.
Não são apenas “feios, porcos e maus” os Smith. São frágeis, e sobrevivem anestesiados com certos programas de televisão – numa clara antecipação da dormência das redes sociais que dominam o primeiro quarto do século XXI. Ansel é mecânico; Sharla trabalha num restaurante; Chris tentou ser caseiro numa quinta, e tudo o que lhe resta é ser um pequeno traficante; Dottie raramente sai de casa e tem vinte anos. Este quarteto não almeja outros horizontes, talvez por sentir que só outra condição social e financeira o permite.
O inevitável sucede: Joe revela a sua perversão. Adia o homicídio, aproveitando-se da virgindade de Dottie, que, entre a alienação o sonambulismo nocturno, se sente apaixonada por aquele homem.
A brutalidade que diz a verdade (também sobre Portugal)
Mais do que contar a história brutal deste período trágico dos Smiths, o texto e a dramaturgia da peça alertam para uma humanidade sem esperança, que, como refere na folha de sala, o encenador Miguel Graça, se encontra também no mapeamento do que é hoje o nosso país, a alguns quilómetros de uma Lisboa cosmopolita, provando que a capital não é, de todo, a única realidade económica e social de Portugal. Estas famílias e estas personagens (pessoas) existem nas suas casas sem condições, onde vivem muitas vezes abaixo do limiar de sobrevivência, com um forte desejo de mudança, cansadas dessa existência com rasteiros objectivos. Sem as situações em que impera uma tonalidade cómica, “Killer Joe” seria de uma dureza implacável. Consta que na estreia, em 1993, muitas foram as pessoas que não aguentaram a pesada carga emocional deste teatro sobre a decadência humana. A peça de Tracy Letts foi “salva” pelos elogios de um famoso crítico do jornal Chicago Tribune, voltou a ser representada no Festival de Teatro de Edimburgo, e seguiu para Londres, nesses idos anos 90.
É exemplar o trabalho do quinteto de actores nesta apresentação da peça na pequena sala-estúdio Mário Viegas. A dinâmica do seu discurso e a forma tensional como que se movimentam no cenário único da autocaravana, não descurando o fora de cena (o quarto, onde se esconde Dottie; o alpendre, onde lixo e objectos perdidos se acumulam; o ladrar do cão que traz o compasso sonoro), fazem com que a progressão dramática se ajuste à potência daquilo que poderíamos aproximar do “realismo sujo” ou da cultura pulp.
Ensaiar, conceber cenicamente e interpretar “Killer Joe” num Portugal que está em transformação, onde a intolerância surge muitas vezes como grito injusto contra a liberdade e o olhar justo para com o outro é uma forma maior – corajosa – de resistência do teatro, da arte e da cultura em geral.