Num tempo em que o Portugal trauliteiro, arrogante, xenófobo e reacionário abre de novo a asas de corvo velho, num despudor de ranço cavernícola e discursos cerzidos a teias-de-aranha e retórica pífia a tresandar enlatadas vozes avoengas, de Salazar e Caetano, necessário se torna que a esquerda consequente, inteligente e corajosa enfrente, com determinação e as armas da denúncia e da factualidade histórica, essa cáfila de ressurrectos algozes dos dias da miséria, da fome e da guerra, mesmo que em fatos de seda e falas de cetim. A esses novos “cavaleiros do apocalipse” que se perfilam em pilecas de perfídia e nojo, devemos responder com a razão e a justiça, com os ideais lídimos e progressista que Abril nos deu e as porta do devir que ele abriu.
O novo livro do “capitão de Abril”, Manuel Duran Clemente, vai nesse sentido, quando denuncia, ponto por ponto, etapa por etapa, vergonha e crimes, o Novembro que traiu os mais altos sonhos e projectos de Abril, e permitiu que, no País solar, o dia inteiro e limpo fosse paulatinamente regressando ao lodo dos tempos ignaros. Os criminosos do Verão Quente de 75 estão hoje no poder, sentam-se à mesa do orçamento, têm lugar na Assembleia da República, que queríamos asseada e livre, e têm assento no seu órgão dirigente.
O que mudou para que esta vil tristeza, que há séculos tolhe os passos mais audazes deste país, regressasse impante, 50 anos após o dia maior das nossas vidas? Algumas das razões são assinaladas por Duran Clemente, logo a abrir o discurso e recorrendo ao livro Esta Democracia Filofascista, de um dos nossos militares mais corajosos e lúcidos, João Varela Gomes. As razões do declínio de alguns valores de Abril, vem logo plasmada nas primeiras linhas: uma sociedade onde reina a indiferença e cepticismo político, e em que a mediocridade do pensamento crítico permanece inabalável, não pode ter futuro, um futuro digno e socialmente justo. Mal congénito o nosso, que a par de grandes vultos da Cultura e dos saberes (quase sempre sonegados) se junta uma corja de seres rastejantes, cínicos, corruptos e videirinhos, que vão derruindo por dentro as ameias de um país que merecia outra e sorte e, afinal, traz acolitados a partidos a que Abril concedeu alforria, toda a corja de sabujos. Diz-nos ainda Varela Gomes, neste oportuno tributo que um seu camarada de Armas lhe dedica neste O 25 de Abril que Novembro Traiu: “Os velhos fascistas restaurados no seu poderio. Os Mellos, os Champalimaud, os vampiros de outras eras, novamente em acção. E outros, de igual colheita, que a eles se juntaram.
Se este novo e urgente livro de Duran Clemente abre com um tributo a Varela Gomes, o seu grito final é de esperança, de afirmação do caminho iniciado em Abril de 1975: basta Ter Esperança que dias mais altos e fecundos surgirão, há sempre, na história dos povos, momentos inesperados, o poder, mesmo o das autocracias mais infrenes, é sempre mais frágil do que pensamos.
Rui Pereira, que prefacia este novo livro, refere com límpida justeza: «Duran Clemente e outros homens como ele, que actuaram numa situação revolucionária e contra-revolucionária muito complexa, estão na história deste país, diga-se o que se disser e pense-se e sinta-se a esse respeito o que se quiser sentir e pensar.»
É da nossa história contemporânea que este livro fala, dos avanços e recuos de um agreste percurso. Nada está, no entanto, perdido. É necessário resistir porque, como escreveu Romain Rolland, É livre quem está pronto a tudo sacrificar à sua alma livre.
O 25 de Abril que Novembro Traiu, de Manuel Duran Clemente – Edição Modocromia/2025