Opinião

Internacional

A Revolução de 2024 e a crise política no Bangladesh

O Bangladesh tornou-se independente em 1971, após um conflito sangrento contra o Paquistão. A raiz dessa independência foi a primazia da cultura e da língua bengali sobre a religião.

Foto: João Delgado Nunes

Entre janeiro e fevereiro de 2025, visitei o Bangladesh, um país frequentemente associado no Ocidente à sua diáspora. Recentemente, essa mesma diáspora esteve nas manchetes em Portugal devido a mais um caso de racismo policial. Mas foi um outro acontecimento que trouxe o Bangladesh para o panorama político global: a revolução de agosto de 2024, liderada por estudantes, que derrubou Sheikh Hasina e o Partido Awami.

Para compreender o pouco que se conhece desta revolução, é essencial analisar o contexto histórico que a precede.

O Bangladesh tornou-se independente em 1971, após um conflito sangrento contra o Paquistão. A raiz dessa independência foi a primazia da cultura e da língua bengali sobre a religião.

Durante o domínio britânico e, posteriormente, sob o Paquistão, o território do atual Bangladesh foi constantemente marginalizado.

A luta começou nos anos 1940, quando o Movimento da Língua Bengali se opôs à tentativa de imposição do urdu como única língua oficial do Paquistão. Grande parte desse movimento era composta por estudantes da Universidade de Dhaka, um dos poucos espaços que viam chegar novas ideias a uma complicada e conservadora zona do mundo.

O fundador do Paquistão, Muhammad Ali Jinnah, insistiu no urdu como língua nacional, o que gerou resistência em Bengala Oriental. Apesar da vitória do Movimento da Língua Bengali, o Paquistão Oriental permaneceu subjugado pelo governo central. A faísca necessária para incendiar o movimento da independência bengali foi a recusa do presidente Yahya Khan em permitir que Sheikh Mujibur Rahman, vencedor das eleições de 1970, assumisse o governo. A guerra que se seguiu culminou na independência do Bangladesh.

Os primeiros anos do novo país foram marcados pela instabilidade. Como solução, Mujib tentou consolidar o seu instável poder através de um sistema próximo do socialismo. Sistema este que a história ocidental reescreve como uma “afronta à democracia” – a verdade da insatisfação está, no entanto, longe de ser simples. E pouco tempo depois, o seu governo é derrubado e Mujib, assassinado. A partir de 1975, uma série de golpes militares mergulhou o Bangladesh num ciclo de instabilidade que durou até 1991.

A Alternância entre Hasina e Zia

A revolução de 1991 trouxe ao poder duas mulheres com visões antagónicas: Sheikh Hasina, da Liga Awami, e Khaleda Zia, do Partido Nacionalista do Bangladesh (BNP). Zia vence as eleições, tornando-se a primeira mulher a liderar o país. Algo que dificilmente seria possível não fosse o Bangladesh forjado pelo secularismo.

O governo de Zia trouxe investimentos estrangeiros e restaurou a democracia conforme os ditames ocidentais, mas as desigualdades sociais e a corrupção atingiam, mais uma vez, níveis incapazes de garantir a dignidade de um povo.

Zia foi reeleita com o apoio do Jamaat-e-Islami, um partido islâmico radical, mais tarde condenado por crimes de guerra e ligações a grupos terroristas. Essa aliança representou uma ameaça ao secularismo que havia sido a base da independência bengali e a razão pela qual uma mulher poderia governar aquele país.

Nos anos seguintes, Hasina sobe ao poder, promovendo crescimento económico e redução da pobreza. No entanto, o seu governo foi acusado de autoritarismo, repressão da oposição e manipulação do sistema eleitoral. Acusações que não são endémicas ao governo de Hasina, mas ao cenário político bengali desde o nascimento do país.

A Revolução de 2024

No início de junho de 2024, uma revolução estudantil eclodiu, resultando na queda do governo de Hasina. O movimento foi impulsionado pela aprovação de uma lei em concreto — o sistema de aprovação de cotas para o serviço público, lei esta que visava que mais de metade das cotas para o serviço público fossem exclusivas a descendentes dos que fizeram parte da luta de libertação do Bangladesh — lei esta que vai mais além do que aquela introduzida por Sheikh Mujib em 1972, onde 30% das cotas eram exclusivas para descendentes dos libertadores do país.

Após mais de dois meses de conflitos e vários estudantes mortos, Hasina declara luto nacional e reduz a percentagem de cotas para descendentes das forças de libertação para 7%. O movimento havia, portanto, triunfado.

É no pós-capitulação que surgem as grandes questões sobre a origem deste movimento. O sistema de cotas passa a ser de importância menor, e repentinamente o que se exige é a queda do governo Awami. Os protestos continuam com a mesma intensidade até à queda do governo.

As reivindicações não são assumidas por alguma força política; tudo o que se conhece deste movimento é que é uma revolução estudantil que se insurge contra a lei de cotas e, de repente, torna-se numa afiada ponta de lança que exige violentamente a queda do governo de Hasina.

Todos os estudantes com quem tive a oportunidade de falar expressam um vazio ideológico sobre os acontecimentos e um estranho orgulho daquilo que conseguiram (uso a palavra “estranho” porque fica no ar a sensação de que nem eles sabem o que estão a fazer).

O Bangladesh Pós-Hasina

Atualmente, o Bangladesh enfrenta uma ausência de poder no sentido negativo. Pequenos protestos paralisam Dhaka, a polícia limita-se a lidar com crimes menores, e a rivalidade política transformou-se numa guerra entre facções.

O nome de Sheikh Mujib, outrora venerado como pai da nação, é agora associado ao termo “fascista”, enquanto Hasina se tornou o principal alvo do movimento estudantil. Curiosamente, o descontentamento também foi apropriado por grupos ultraconservadores que, entre outras coisas, proíbem jogos de futebol feminino ou ofendem mulheres que se vestem como entendem. Mais uma vez, devo referir que o Bangladesh, apesar de ser um país islâmico, sempre demonstrou uma grande abertura e flexibilidade perante os direitos das mulheres. Algo que hoje parece querer ser enterrado.

Convém reforçar que esta vontade de islamizar o país é acompanhada pelo maior número de violações que o país já viu. Uma amiga diz-me que, pela primeira vez, tem medo de sair à rua quando a luz do sol se desvanece.

O governo bengali está hoje nas mãos do Prémio Nobel da Paz Muhammad Yunus, fundador da Grameen Foundation, que garante empréstimos através de microcréditos para que cidadãos do Bangladesh possam sair do estado de pobreza extrema e começar os seus próprios negócios.

Curioso que este nomeado conselheiro de Estado, apesar de assumir um carácter temporário, seja alguém que venha do mundo empresarial e não político. Curioso também que Yunus foque toda a sua crítica às mortes que ocorreram pelas mãos do governo de Hasina, ao mesmo tempo que permite que o partido fundamentalista Jamaat-e-Islami volte ao cenário político.

Hoje, no Bangladesh, a origem revolucionária do país parece esquecida nos escombros de uma revolução que tão pouco sabemos de onde veio ou o que realmente significa.

Hoje, a maioria odeia a Índia pelo exílio de Hasina, e a história reescreve-se, tentando colocar o Bangladesh mais próximo do Paquistão. O país que massacrou o Bangladesh e força-se o esquecimento do papel da Índia e da União Soviética como catalisadores da independência.

Reescreve-se a história para esquecer o passado secular do Bangladesh e normalizar a islamização de um povo. Estas são as únicas consequências visíveis de mais uma aclamada “primaveril revolução”.

Artigos Relacionados