Opinião

Literatura

Diário Incontínuo, de Mário Cláudio

Que nos amamos pouco e mal, todos o sabemos. Por vezes, amargamente o sabemos. Garrett avisou-nos, mas de pouco nos serviu. Continuamos, sobranceiros e diligentes, a ignorar-nos mutuamente, a ter, como hoje cinicamente se afirma, uma memória selectiva para o que nos é, em termos identitários e éticos, essencial.

Conseguimos amar o que nos chega de fora, a assimilar acrítica e devotadamente todos os subprodutos que os impérios mediáticos promovem com mão operativa e marketing agressivo, levando-nos ao consumo desbragado e irracional de artefactos culturais de medíocre extracção. Assim, nesta deriva consumista, nos fomos ao longo dos anos (com claros e graves sinais, a partir dos anos 1980) aculturando e transformando numa massa anódina de consumidores passivos, sentados nas ameias do sofá, de todo o género de produtos culturais estranhos, promovidos em caixa alta e primeiras páginas pelos media de serviço. Esquecemos, ou levaram-nos a esquecer que, num mundo globalizado como este em que vivemos, os povos que não assumem a sua identidade cultural, que não respeitam e promovem os seus valores patrimoniais, que não se pensam, reflectem e afirmam, tenderão a desaparecer no confronto cultural com outros povos. Um povo, para o ser enquanto identidade colectiva, nas vertentes linguísticas, científicas, morais e sociais, precisa de referentes, de sinais, de raízes, de memória. Só nesse confronto se afirmará distinto, só na diversidade da nossa singularidade cultural nos poderemos impor como povo ao respeito e admiração de outros povos.

Mário Cláudio, um dos nossos grandes escritores contemporâneos, tem percorrido nos seus livros, desde Trilogia da Mão, passando por Triunfo do Amor Português e Embora Eu Seja Um Velho Errante, a busca de um sentido estético e idiossincrático desta estranha coisa que é ser-se português, ou seja, deste povo que durante séculos aguentou a canga, a fome e os maus-tratos, a submissão e a ignorância, mas foi igualmente capaz de corajosos actos de rebeldia e inconformismo que pontuaram a nossa história, desde a revolução de 1383, ao Prior do Crato e à batalha do Caia e outras pelejas menores, até ao 5 de Outubro de 1910 e ao dia inteiro e limpo de 25 de Abril.

Pela pena atenta de Mário Cláudio, desfilam, em memoráveis momentos de prosa superior, Amadeu de Sousa Cardoso, Guilhermina Suggia, a ceramista Rosa Ramalho, para além de Caravaggio, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci e outros nomes maiores da cultura europeia e universal.

Um grande autor como Mário Cláudio não escamoteia, não se furta, não se esconde por detrás de mantos diáfanos da realidade: assume a sua condição de atento perscrutador do inominável, os seus medos, a sua identidade social, o meio onde se move, os hábitos, os amigos, a família, os gostos, os apelos do corpo e as inquisidoras formas de descriminalização, as viagens, com Itália no bojo dos afectos, o confronto aberto com os seus pares, os que admira e os que critica , os seus métodos de escrita e o que nesse mister o convoca para as tarefas árduas de escreviver. Tudo isto num livro soberbo, de memórias escritas com interregnos, Diário Incontínuo lhe chama o autor, entre 1958 e 2019.

À escrita modelar de Mário Cláudio não escapa o aguilhão certeiro e reactivo, ou o desabafo assertivo, denunciando a tacanhez e insensibilidade de certa crítica que advoga nas gazetas do burgo, como acontece nesta entrada de 18 de Novembro de 2008: «No Público de sexta-feira passada uma alimária crítica solta um vómito de insultos a A Última Colina, o mais recente romance de Urbano Tavares Rodrigues. Não o detém a idade do escritor, nem o seu estado de saúde, erigindo-se assim em protótipo infame dessa lusa boçalidade que constantemente ilustra a fábula do leão moribundo.»

Às memórias de Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda, José Gomes Ferreira, Armindo Rodrigues ou José Saramago, juntamos este recente e indispensável Diário, para os que querem conhecer a intimidade, as vivências, os modos peculiares de olhar e entender a substantiva realidade dos universos íntimos e públicos do autor de Camilo Broca.

Diário Incontínuo, de Mário Cláudio é, seguramente, uma das colheitas mais estimulantes da safra literária de 2024.

Diário Incontínuo de Mário Cláudio – D. Quixote, 2024.

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