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“O dia em que te conheci”: um filme que dá voz a quem não tem voz

A edição de 2024 do Festival DocLisboa encerrou em chave de ouro com “O dia em que te conheci”, do realizador brasileiro André Novais Oliveira. O filme traz para a linha da frente dois trabalhadores que, na dureza da vida, conseguem redescobrir a possibilidade de amar.

Zeca (Renato Novaes) vive em Belo Horizonte, numa casa que partilha com Lucas. Quando o filme arranca, vemos Zeca insistir para que o amigo o acorde às 6h20 da manhã. Zeca não se consegue levantar, apesar das tentativas de Lucas. Esforça-se para apanhar o autocarro, corre por ruas e viadutos, onde o trânsito matinal impera. No autocarro, com Lucas viajam estudantes e outros proletários. É sexta-feira, e parece habitual Zeca não acordar a horas. Neste dia, até o autocarro avaria. Zeca, ansioso, vai a uma lanchonete, com outro trabalhador, enquanto o próximo autocarro não vem.

O ritmo lento das cenas permite viver as subtilezas que compõem as circunstâncias do quotidiano. O dono da lanchonete vai fritar os pastéis que eles lhe pedem. Zeca e o companheiro correm. Zeca volta a ter dificuldades neste segundo sprint. É um homem possante, com uma barriga proeminente. Além disso, o seu olhar parece esconder alguma melancolia. No autocarro, o rapaz comenta com Zeca que o dono estava a fumar enquanto cozinhava, e que lhe deu o troco a mais.

O ambiente em que André Novais Oliveira nos coloca é o das classes mais desfavorecidas. Zeca é bibliotecário numa escola que fica a uma hora de distância de casa. Gosta do que faz, gosta de lidar com crianças. Não se importa de demorar tanto tempo de Belo Horizonte até Betim. Luísa (Grace Passô), que trabalha na secretaria, vai ter com ele à biblioteca com a notícia do despedimento. Zeca compreende: nesse mês, faltou três dias e chegou cinco vezes atrasado.

Luísa oferece-se para lhe dar boleia ao fim da tarde. A pequena ousadia muda tudo. Ou melhor: porque é despedido, Luísa foi ter consigo à biblioteca, coisa rara entre colegas que trabalham na mesma escola em sítios diferentes.

“Os oprimidos e os injustiçados são os mais discriminados”

À hora a que o filme foi projectado, acontecia uma importante manifestação contra a radicalização dos discursos racista, xenófobos e intolerantes (que levaram à morte de um cidadão na madrugada do dia 21 de Outubro). Pessoas de todas as idades, etnias e raças desceram a Avenida da Liberdade com cartazes onde podíamos, por exemplo, ler: “Os oprimidos e os injustiçados são os mais discriminados”. Uma frase sintetiza a situação daqueles que acordam de madrugada nos subúrbios da capital, têm vários trabalhos, e dificuldades em suportar todos os custos da vida contemporânea.

É sobre as classes sem voz activa numa sociedade desajustada que fala o singelo “O dia em que te conheci”. O povo é mais do que o povo que sobrevive. Uma sociedade mais fraterna, igualitária e unida deveria ser aquela em que cada um de nós não tem como foco a luta pela sobrevivência e pode ainda ousar sonhar.

No final, Luísa descobre que Zeca está a tomar mal um comprimido, e que por isso tem sono de manhã. É uma pequena grande mudança para Zeca. Tudo graças à relação que nasce entre ele e a colega.

Acontece o despertar tímido e receoso do amor. Numa alvorada em que Zeca sai de casa para ir à pastelaria e já não toma sozinho seu habitual pequeno-almoço. Compra fiambre, queijos, pão e bolos para levar. Em casa, tem Luísa à sua espera. Mesmo que tenha agora de voltar a procura trabalho. “O dia em que te conheci” é uma história simples e complexa sobre as vidas das pessoas que encontramos diariamente nos transportes: as que fazem a limpeza das salas de cinema e dos escritórios; as que nos servem as refeições e o café, antes e depois de uma sessão começar; as ajudam a construir e a limpar as casas onde podemos habitar…

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