Opinião

Literatura

A carta que nunca te escreverei, de Manuel Veiga

«A literatura permanece como a única verdadeira ferramenta para dominar a linguagem – e a linguagem é o alicerce de tudo.» Mario Vargas Llosa

Manuel Veiga é, antes do mais, um excelente poeta, embora lhe reconheçamos na prosa talento de sobejo, mormente nesse magnífico Do Amor e da Guerra. Colaborador de longa data da revista Seara Nova, também com artigos de opinião em Diário de Lisboa, Poder Local O Diário. Advogado, foi Inspector Superior da Inspecção Geral da Educação e consultor jurídico na Câmara Municipal de Loures, em gestões CDU.

Começamos a ler este romance de Manuel Veiga e entramos em dois universos temáticos e estéticos singulares, duas realidades e duas distintas linguagens as quais, pelos caprichos da Literatura, se hão-de cruzar bastas vezes ao longo desta narrativa. Processo diegético incomum na actual literatura portuguesa, mas que o autor desenvolve com perícia e um razoável sentido de humor.

Como se escreve um romance?, interroga-se o descritor Manuel Maria, o que nos vai contar esta estória, este épico mordaz, em carta para Flávia, a filha a haver, que parece saído da pena de um Camilo Castelo Branco em dia de bonança para os lados de São Miguel de Seide e lhe desse na tonta de cavalgar em égua desembestada e chegar à Casa Grande de Romarigães, pôr-se em paleio erudito com um tal Aquilino Ribeiro, Republicano dos tesos e ele, Camilo, 1º. Visconde de Correia Botelho, sempre a tinir, agarrado à pena para granjear uma sopa de couves e uns torresmos para acompanhar o tinto das verdes uvas minhotas e o Aquilino a falar-lhe dos grandes senhores das terras de entre Douro e Minho e das Beiras, que escravizam quem os serve e andam por esses campos do Demo a destapar quantas saias encontram solitárias por pinhais e serranias, como se lobisomens fossem.

Camilo a dizer a Manuel Maria, aprendiz de feiticeiro através do talento de um tal Manuel Veiga, que desta poda sabe mais do que aqui, neste A Carta que Nunca te Escreverei, se revela, mesmo que a prosa esteja pejada de sinédoques, de híper diegeses à boleia de um tal Lobo Antunes, que Camilo e Aquilino nunca conheceram, e de analepses que todos usaram à farturinha nos seus escritos, e outras redondilhas maiores para tecer a narrativa e no-la dar assim, como se sangue das pedras fosse, mas com ágil e subtil acinte para não ferir as sensibilidades hodiernas pouco dadas a tragédias e maus modos rupestres, a não ser as que de fora nos chegam e nos doem de impotência em pôr-lhes cobro, que a tanto não almeja quem é apenas dono de pena e de talento. Dizia eu, a perder o fio da coisa, que o Camilo, com a paciência e a manha que adquiriu na masmorra indigna da Cordoaria, que estas coisas de damas da nobreza falida, casarem com brutamontes latifundiários das berças ou mais arriba, habituados a estrume, bácoros e vacas, dá sempre mau resultado, eles que, de tanto chafurdar no esterco, já não distinguem a esteira de uma prostituta, do leito nupcial acetinado de uma viscondessa virgem e de apelido Rio Seco.

Um romance a ler, pois então, que para tal servem os olhos, que não para derreter na pantalha frente às desgraças do mundo. Neste A Carta que Nunca te Escreverei, encontramos a violência e o estupor de um mundo que morreu e a dignidade de um outro que nasceu da sanha libertária e heroica dos capitães de Abril. Ah!, e temos como bónus o esplendor de uma língua que tão mal tratada anda, a qual neste livro brilha como se dentro das palavras que o habitam nascesse o Sol – o tal que, dizem os magos, quando assim nascido deverá ser para todos!

A Carta que nunca te escreverei, de Manuel Veiga, Chiado Books/2024

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