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“A dinamite só rebenta com rastilho”

Odair Moniz morreu baleado por agentes da PSP na Cova da Moura. É este o nome que corre de boca em boca nos bairros da periferia de Lisboa. Não é o primeiro. Temem que não seja o último. A família da vítima acusa a polícia de invadir a casa sem mandado e de rebentar a porta do apartamento enlutado agredindo várias pessoas à bastonada. A morte de mais um homem às mãos da polícia é o rastilho de uma explosão que não sabemos onde vai parar.

Ilustração: Luís Alves

“Chega de matarem os nossos filhos, chega de matarem os nossos irmãos, chega de matarem os nossos amigos”, grita uma jovem de megafone na mão. “Chega de polícia assassina”, responde, em uníssono, um grupo de quase três dezenas de mulheres. Um dia depois da morte de Odair Moniz, baleado pela polícia na Cova da Moura, Amadora, a revolta pressente-se em cada rosto. Mulheres e homens, jovens e idosos, ninguém arreda pé das ruas do Bairro do Zambujal. Era aqui que vivia o cozinheiro de 43 anos com a sua companheira e os três filhos. De tempos a tempos, ouve-se o rebentamento de um petardo. O ambiente é de cortar à faca.

À saída deste bairro de 6 mil moradores, junto à polícia, estão as televisões. As mulheres caminham nessa direção e viram costas aos agentes, num minuto de silêncio em que todas levantam os punhos. “Unidas pela força”, gritam imediatamente a seguir. Ao longe, dezenas de jovens encapuzados preparam o seu luto incendiário. De passa montanhas, um deles empurra sozinho um contentor amarelo pela rua. De forma anedótica, alguém lhe grita do cimo do prédio pelo nome próprio, destapando-lhe a identidade. Um grupo de adolescentes despeja uma enorme caixa de garrafas de vidro vazias. É um arsenal rudimentar para enfrentar autênticos robocops. David contra Golias em versão moderna. Na cabeça destes rapazes, aqueles que assassinaram o seu vizinho.

Dezenas de mulheres viram costas à polícia à entrada do Zambujal.

“Nós somos os palestinianos de Portugal”, assegura um homem que nada tem a ver com aquele grupo. Vem da Cova da Moura e explica que Odair, baleado no seu bairro, era muito querido ali e noutras zonas da Amadora. Não se quer identificar mas diz que é barbeiro de profissão e que agora trabalha na construção civil. As televisões são responsáveis pela má imagem dos bairros perante a opinião pública, acusa, e recorda que este é um lugar pacífico, referindo o trabalho da Academia Johnson com a população mais carenciada.

Esta opinião é corroborada mais à frente por três homens com cerca de 60 anos. Não compreendem como é que “alguém tão bom” pode ter sido vítima da violência policial. Ninguém acredita na versão da faca. “E mesmo que tivesse uma faca, a polícia é treinada para essas situações. Podiam ter disparado para as pernas e não para o peito”. Indignados com a falta de assistência dos agentes, treinados também para prestar os primeiros socorros, acreditam que Odair Moniz estaria apenas embriagado e esse seria o motivo da alegada fuga. Não muito longe, perto de uma parede com o rosto de Nelson Mandela, outro grupo de moradores também discute sobre a alegada faca e sugere ser uma versão construída pela polícia para justificar a morte do vizinho na Cova da Moura. “Muito boa pessoa”, repete um pastor evangélico, que compreende a revolta dos mais jovens. “A dinamite só rebenta com rastilho”, recorda alguém ao lado.

Apagar a fogueira com gasolina

Vários jovens de cara tapada convidam o motorista e vários passageiros a sair do autocarro. Este é o seu bairro. Nesta revolta suburbana em que desafiam o monopólio da violência estatal, usam as poucas armas ao seu dispor. É a vingança dos marginalizados. Chegou a hora do luto incendiário. Dezenas correm de diferentes partes. Apedrejam as janelas da viatura da Carris e incendeiam barricadas. Longe dos prédios, porque querem proteger as casas. De seguida, vários cocktails molotov voam em direção ao autocarro que, envolto em chamas, adia o anoitecer por breves instantes.

Das janelas dos prédios, gritos avisam que a polícia acaba de avançar bairro adentro. Armados de escudos, capacetes, viseiras, bastões, com o apoio de armas letais e não letais, para os jovens que se barricam e enfrentam os agentes à pedrada, o azul destas fardas é indistinguível do azul de quem matou Odair Moniz. 

Meia hora depois, a advogada da família da vítima recebe uma chamada urgente. A polícia invadiu a casa da viúva de Odair Moniz. Catarina Morais não quer acreditar. De acordo com declarações da advogada à Voz do Operário, três agentes da força de intervenção acabam de rebentar a porta e de agredir vários familiares e amigos enlutados. “Um arrombamento violento provocou que toda a aduela da porta saltasse do lado interior”, descreve. “Assim que entraram em casa agrediram com o cassetete uma pessoa. Depois, bateram nos móveis da entrada e abriram a porta da cozinha onde estava uma rapariga que foi agredida com o cassetete. Entretanto, disseram um impropério e foram-se embora”. Catarina Morais dirige-se para a casa de Odair Moniz para recolher testemunhos e provas da invasão quando alguém avisa que a polícia está a voltar ao local. A advogada recebe-os à porta com a presença de um canal de televisão. “Eles ficaram surpreendidos”, descreve. “Disseram-nos que só estavam ali para pedir à família de Odair para fazerem o luto de forma civilizada. Isto é inacreditável. O que é isto de fazer o luto de forma civilizada?” A notícia espalhou-se por toda a periferia de Lisboa. Bairros de Sintra, Odivelas, Cascais, Oeiras e Loures aderiram à revolta numa madrugada de violência que não se sabe quando estancará.

Construção da narrativa da culpa

Desde que Odair Moniz foi morto pela polícia, a PSP já mudou a versão oficial do caso várias vezes. As declarações do agente incriminado à Polícia Judiciária (PJ) contrariam o auto lavrado no dia da morte à PSP quando afirmou que a vítima teria recorrido a uma arma branca para atacar os polícias. De acordo com imagens das câmaras de videovigilância analisadas pela PJ, Odair Moniz não tinha qualquer arma nas suas mãos. O primeiro comunicado da PSP referia ainda que a vítima tinha sido “prontamente assistida no local”. Contudo, vídeos gravados no local por moradores mostram que só após alguma pressão é que os agentes decidiram verificar o pulso de Odair Moniz.

Uma das pessoas que corrobora esta versão é Jakilson Pereira. É presidente da mais importante associação da Cova da Moura, o Moinho da Juventude, com um trabalho reconhecido junto da população, que mereceu até a visita do Presidente da República em 2016. Foi neste bairro que Odair Moniz, do Zambujal, foi baleado pela PSP. O dirigente associativo acusa os agentes de falta de auxílio e de estarem mais preocupados em encontrar os casquilhos das balas e revistar os bolsos da vítima do que em salvar-lhe a vida. Também denuncia que qualquer desobediência à lei em diversos espaços do país é tratada de forma diferente. “Noutras regiões, sobretudo a norte, eu não vejo essa forma de abordagem com os prevaricadores. Colocam em segundo plano a vida humana, tentam invisibilizar porque é uma vida humana racializada [Odair Moniz] e criam uma narrativa para justificar a barbárie”, explica.

Jakilson Pereira, membro da direção do Moinho da Juventude, associação da Cova da Moura.

De acordo com Jakilson Pereira, o primeiro comunicado da PSP dá a entender que há a intenção de manipular. Para além da referência à faca, veio a público a existência de uma viatura roubada. “Dois dias depois, acompanhando os factos com os vídeos e com testemunhas presenciais, nada disso é factual. A viatura era da vítima. E ao contrário do que diz o auto da PSP, agora o próprio agente já desmente à Polícia Judiciária que tenha havido qualquer tentativa de agressão com uma faca”. Para o presidente do Moinho da Juventude, a intenção de manipular não vem dos agentes em causa. “Não acredito que a pessoa que disparou é que tenha escrito o comunicado. O comunicado saiu da instituição. E logo ali percebe-se que há uma negação de justiça e uma tentativa de manipulação dos factos”.

A única face visível do Estado

Em 2001, Ângelo Semedo, de 17 anos, conhecido como Angoi foi morto por um agente da PSP com um tiro de caçadeira. Angoi foi abordado por dois polícias perto de sua casa por suspeita de roubo de um automóvel. O agente foi apenas suspenso por 75 dias. Dois anos depois, Carlos Reis (PTB), de 20 anos, foi baleado na cabeça por um agente da PSP, durante uma ‘operação stop’. Segundo a polícia, foi mandado parar, mas desobedeceu à ordem. No ano seguinte, em 2004, no Bairro 6 de Maio, na Amadora, José Carlos Vicente, conhecido por Teti, de 16 anos, foi agredido pela polícia acabando por morrer no Hospital Amadora-Sintra. Vítima de uma hemorragia, entrou em paragem cardíaca. Em 2009, Edson Sanches (Kuku), de 14 anos, morador na Quinta da Laje, Amadora, morreu baleado pela polícia. Três agentes da PSP à paisana encurralaram um veículo com cinco suspeitos de furto, incluindo Kuku, filho de emigrantes cabo-verdianos, que frequentava uma escola na Reboleira. Depois de uma perseguição, Kuku foi abatido à queima-roupa com um tiro na cabeça a uma distância de menos de 20 centímetros. O agente responsável pelo disparo foi absolvido. Em janeiro de 2020, Cláudia Simões foi vítima de agressões policiais depois de ser alvo de detenção violenta em frente à filha que se esquecera do passe do transporte. A luso-angolana acabou também acusada pelo tribunal de agredir o agente Carlos Canha. 

Em fevereiro de 2015, Flávio Almada, também conhecido como LBC, foi ilegalmente detido pela PSP na esquadra de Alfragide com outros moradores da Cova da Moura quando se deslocaram ao local para pedir esclarecimentos sobre a detenção de um jovem do bairro. Os tribunais deram como provado que foram alvo de detenção ilegal e de agressões policiais, uma rara sentença que teve como resultado um agente condenado a pena de prisão efetiva e outros a pena suspensa. 

Flávio Almada considera que há que acabar com a classificação de zonas urbanas sensíveis.

Também membro do movimento Vida Justa, com uma forte ligação aos bairros da periferia de Lisboa, Flávio Almada considera que falta debate sobre décadas de impunidade. “Há décadas que há casos de jovens da periferia, moradores e trabalhadores dos bairros, que são mortos em circunstâncias estranhas, desarmados, com tiros nas zonas vitais e não acontece nada. Vão-se queixar onde? Conhecemos situações de pessoas agredidas ou brutalizadas que vão ao tribunal e saem como arguidas”, denuncia. “Como aconteceu com a execução do nosso irmão Odair, as vítimas são desumanizadas no espaço público para normalizar o teor da força de repressão da polícia que atua nas nossas comunidades como um exército de ocupação”.

Não tem dúvidas. Esta revolta é “o grito dos oprimidos”, o grito “de quem está sufocado com a opressão e já não tem mais aonde recorrer”. Não é vandalismo, considera. “É um grito por justiça. Temos uma experiência coletiva nos bairros de violência policial, de repressão e uma cultura de impunidade quando a polícia mata alguém ou tortura pessoas. Invadirem a casa da família enlutada é o quê? Não respeitam sequer o luto. Porquê? Isso é mais uma forma de mostrar desprezo”. 

Com manifestação marcada para o próximo sábado, 26 de outubro, do Marquês de Pombal à Assembleia da República, Flávio Almada entende que há que exigir ao poder político a remoção a classificação das zonas urbanas sensíveis, que considera ser “uma forma de criminalização territorial e criminalização das populações”, em particular “dos negros, dos ciganos e das pessoas pobres da periferia”, e criar políticas sociais públicas direcionadas para esses territórios “com a participação, a discussão e a decisão dos moradores”. Em muitos destes bairros inexistem transportes, escolas, serviços de saúde, manutenção do espaço público, habitação digna. Entre a população da Cova da Moura e do Zambujal, são muitos os que consideram que a única face presente do Estado nos bairros é a repressão policial.

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