Entrevista

Pedro Ventura

“A AIL é o braço dos inquilinos na luta pelo direito à habitação”

A cumprir agora um século de existência, a Associação dos Inquilinos Lisbonenses ocupa um espaço imprescindível na defesa dos direitos e interesses dos inquilinos de Lisboa por uma habitação digna. É uma história que percorre várias gerações de associados que mantiveram, mesmo nos momentos mais difíceis, a causa do acesso a um tecto para todos. À frente da associação está Pedro Ventura, que não abandonando as raízes, projeta-as nas lutas de hoje. Com duras críticas ao atual governo, considera que, hoje, os inquilinos estão mais desprotegidos.

Cem anos depois, qual a atualidade da AIL? Mantêm-se os seus propósitos fundacionais?

Só uma organização ativa e útil ao povo pode comemorar cem anos. A AIL mostrou capacidade de sobrevivência a muitos desafios, incluindo a ditadura de Salazar e Caetano, mostrando uma convicção inabalável na defesa dos inquilinos. No caso da AIL, foi a habitação, ou a falta desta, que impulsionou inquilinos e cooperantes, há 100 anos, a fundar esta associação, perante uma sociedade que não protegia e considerava os inquilinos, quando estes mais precisavam. Os inquilinos sentem que a AIL é o seu braço na luta pelo direito à habitação.

De que forma é que enfrentam os novos desafios do presente? Há uma mudança no perfil do inquilino?

Continuamos a ter inquilinos mais idosos, os quais representam no total nacional cerca de 120.000 contratos. Entretanto, têm entrado novos associados que encontram na AIL um serviço de excelência na defesa dos seus direitos e por isso saudamos as novas entradas. Observamos e estamos atentos a todos os que pretendem dividir os inquilinos na luta pelo direito à habitação, ou seja, os que pretendem criar uma clivagem entre quem tem contratos antigos e quem tem contratos novos. Temos rechaçado essas tentativas.

É possível dizer que o direito à habitação está a ser posto em causa pelos responsáveis políticos?

Sim, mas não vem de agora. Todas as medidas que foram tomadas desde o final dos anos 80 do século XX foram no sentido de promover a aquisição de habitação por empréstimo bancário, beneficiando este sector. O arrendamento sempre foi visto como algo a desaparecer, pese embora alguma necessidade que existe do mesmo. Atualmente, existe uma consciência maior da população da importância do arrendamento, mas este tem que ser em condições dignas e com preços acessíveis. Depois, a partir de 2012, com os governos da Troika acentuou-se a financeirização da habitação e o resultado está à vista de todos. Cada vez se constroem mais casas para os ricos e menos para as populações.

O direito à propriedade está acima do direito à habitação?

Os factos não desmentem a pergunta: sempre que o direito da habitação foi reivindicado, nenhum governo nos últimos 40 anos se atreveu a questionar o direito à propriedade. Veja-se o caso da polémica com os imóveis devolutos. O mais recente estudo de Alda Azevedo (ICS) afirma que uma em cada quatro casas construídas nos últimos 18 anos está vazia. Ou seja, existem 700.000 casas vagas em todo o país e quase 50.000 só em Lisboa.

Foi o governo de Passos Coelho e Paulo Portas, com a Lei Cristas, que liberalizou o mercado de arrendamento mas com os executivos de António Costa o problema agravou-se ainda mais.

Na vossa opinião, quais deviam ser as políticas de habitação?

O último relatório da OCDE sobre a habitação, onde refere que o problema é extensivo e está a alargar-se a mais países, afirma que Portugal é o país da União Europeia onde a falta de acesso à habitação mais se agrava. A relação entre o preço da venda das casas e o rendimento das famílias tem o maior desfasamento entre todos os países da UE (excluindo Chipre e Malta, para os quais não há dados).

No seguimento deste relatório, a Comissão Europeia alertou que “a acessibilidade é uma preocupação crescente em Portugal”, enquanto “o acesso à habitação pública permanece limitado” e que o número de pessoas sem abrigo está a aumentar, sobretudo entre migrantes, “a uma escala nunca vista”.

Recentemente apresentámos 25 medidas urgentes para o sector da habitação. Não tendo espaço para desenvolver todas, apresento as que considero mais importantes: 1) Revogação da Lei Cristas; 2) Criação de uma entidade de fiscalização do arrendamento; 3) Criação da plataforma de casas para arrendar; 4) Controlo de rendas; 5) Combate aos devolutos.

Este governo retirou algumas regras que condicionavam o Alojamento Local. Que consequências está a ter?

Menos casas para arrendar e por isso mesmo o problema irá agravar-se, como já se nota. Na AIL recebemos dezenas de pedidos de apoio de inquilinos e todos eles têm três variantes: bullying dos proprietários, contratos precários de arrendamento e despejos.

Os inquilinos estão, hoje, mais desprotegidos?

Estão. É necessária uma nova lei do arrendamento habitacional que substitua a Lei Cristas. O PS não a revogou e o PSD/CDS, os criadores da Lei Cristas, certamente não vão alterar a mesma, pelo contrário, tudo indica até que poderão vir a reforçar a desproteção dos inquilinos. Só a luta poderá levar a uma alteração da lei e a manifestação pelo direito à habitação do passado dia 28 de setembro foi um bom contributo.

Não seria possível dar mais poder aos inquilinos na gestão dos espaços comuns com uma participação democrática nos condomínios?

Sim. Podemos mesmo dizer que os inquilinos deviam até ter uma palavra mais afirmativa na gestão dos espaços comuns dos imóveis e mesmo do bairro.. Não é nada de novo e existem muito boas experiências por essa Europa fora, com destaque para os Países Nórdicos.

O facto de existirem casas sobrelotadas, devido ao preço das rendas, não pode ser também um problema de saúde pública?

Antes de tudo, as casas estão sobrelotadas porque só assim muitas famílias e amigos conseguem um teto. Recentemente, em Sintra, na Tapada das Mercês, os bombeiros foram chamados a um apartamento onde viviam 11 pessoas. Veja-se o caso do prédio na Mouraria que também estava sobrelotado. Pergunta-me se é uma questão de saúde pública e eu acrescento: é uma questão de direitos humanos básicos.

Há cada vez mais pessoas sem abrigo que não estão associadas a problemas de saúde mental ou consumos. Podemos vir a assistir uma explosão de bairros de “barracas” como no passado?

Na nossa análise sim, mas podemos dizer que já se verificam essas situações na AML. E para além disso, já temos cidadãos a morar em tendas, em roulottes e em automóveis. Isto é inaceitável depois do esforço que se fez a seguir ao 25 de Abril de 1974 para garantir o direito à habitação. Infelizmente, as políticas neoliberais vêm os povos numa perspectiva utilitarista e sem direitos, e por isso a negação do direito à habitação também está na sua génese. Todos nós já ouvimos falar, ou lemos, as condições precárias dos bairros de trabalhadores durante a Revolução Industrial. Estamos na Revolução Tecnológica e esta não se importa de atirar os trabalhadores para as barracas.

Qual é a importância da mobilização social para exigir mudanças na política de habitação?

Sem mobilização da população não há mudança e esta não acontece sem luta e reivindicação organizada. Vemos isso cada vez mais e muitos e muitas se têm juntado aos movimentos, associações e partidos que defendem o direito à habitação. No presente contexto é inqualificável a crescente dificuldade no acesso à habitação, em particular ao arrendamento, incompreensivelmente e perante a indiferença dos decisores políticos. Temos um mercado de arrendamento desregulado, disfuncional, desarticulado, instável, precário, inseguro, desacreditado, de oferta insuficiente, de rendas em crescendo contínuo a ultrapassar taxas de esforço superiores a 50%, mesmo nos contratos anteriores a 1990 face às sucessivas atualizações das rendas e aos menores rendimentos da generalidade destes inquilinos.

Recentemente os senhorios publicitaram uma petição onde reclamam contra a existência dos contratos antigos e reclamam a atualização das rendas para 1/45 do Valor Patrimonial Tributário das Casas, isto é, um aumento generalizado das rendas destes contratos após o aumento de 2023 devido à lei Cristas. O direito à habitação será um dos principais campos de reivindicação em Portugal nos próximos anos. O nosso compromisso é defender e garantir habitação digna para todos! O nosso compromisso é com o direito constitucional à habitação e com a Lei de Bases da Habitação.

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