Sociedade

50 anos 25 Abril

O Direito à dignidade de uma profissão humilhada

“Eram dois irmãos gémeos, de baixa estatura, com perto de 60 anos” que, no Diário de Notícias do princípio dos anos 70 do século passado, levavam, de bicicleta, as provas ao Palácio Foz sujeitando-as ao lápis da censura ou exame prévio, como eufemisticamente o marcelismo resolveu chamar-lhe. Mas o exame prévio era apenas o último e apertado crivo de uma censura que renascia todos os dias, mesmo antes das agendas nascerem.

No DN, por exemplo, um dos jornais próximos do regime, conta-nos Silva Pires (na altura, um jovem aprendiz), que os jornalistas, de manhã, quando se dirigiam à redação e recebiam das mãos da secretária o serviço do dia, num envelope fechado, onde estava a descrição do serviço e alguns recortes de jornais, já estavam condicionados pela agenda do regime. Depois, havia a eficácia da autocensura e, quando esta se esbatia, a repressão da PIDE, a suspensão ou o encerramento dos jornais. 

Como refere Arons de Carvalho (“A Censura à Imprensa na Época Marcelista”) entre 1926 e 1972 o Decreto fundamental da Legislação de Imprensa institui a censura prévia, define as autorizações prévias para a fundação de jornais e exercício da profissão de jornalista, a repressão judiciária e administrativa, a apreensão e os direitos de resposta. 

A repressão judiciária, primeiro através de julgamento em Tribunal Militar e depois nos Tribunais Plenário, tinha os seus resultados. Refere Graça Franco (“A Censura à Imprensa”) que o controlo dos serviços de censura sobre o exercício da profissão de jornalista dava os seus frutos. Em apenas um ano (1934 a 1935) os 101 jornais situacionistas passavam a 148, os 69 considerados neutros eram reduzidos para 43 e os 81 considerados anti situacionistas restavam 56. O lápis censório não deixava de fora fotografias. A Censura “exercia-se a nível das cartas confidenciais, das circulares, por vezes das simples indicações verbais da Presidência, numa teia complexa de proibições”. A carta a Salazar do diretor do DN em novembro de 1938 é esclarecedora. João Amaral escreve: “reputo impossível trabalhar nestas condições humilhantes”.

A hipocrisia de Salazar está patente na entrevista a António Ferro, no DN, em 1933. António Ferro, escritor, jornalista, político, diplomata, simpatizante dos ideais fascistas de Mussolini, precursor do Secretariado Nacional de Informação, SNI – que juntamente com ao Secretariado da Propaganda Nacional, a Censura e a PIDE formam um dos pilares do salazarismo -, pergunta ao ditador se com a aprovação do texto constitucional “não terá chegado o momento de acabar com a censura?”. Salazar responde: “Compreendo que a Censura os irrite, porque não há nada que um homem considere mais sagrado do que o seu pensamento e a expressão do seu pensamento” e adianta a criação de “um bureau de informações”, que acabaria por ser o SPN, “a que os jornais poderão recorrer, quando quiserem para se munirem de elementos necessários à análise e até à crítica da obra do Governo”. 

Em Marcelo, o discurso não difere muito. Ana Cabrera (“Marcello Caetano: Poder e Imprensa”) refere que “Marcelo não encara a possibilidade de os meios de informação serem independentes do Estado. Na base desta atitude está a ideia de intencionalidade que preside à informação, aliada ao facto de considerar que só o Governo está na posse da informação que interessa aos cidadãos (…) e encara os meios de informação como meros executores e transmissores, acríticos, dessa informação”.

Arons de Carvalho (“A Censura à Imprensa na Época Marcelista”), explica com minúcia a proposta de Lei de Imprensa dos deputados da Ação Nacional Popular, Francisco Balsemão e Sá Carneiro em Abril de 1970, que acaba fundida com a do governo e o parecer da Câmara Corporativa. Diz Arons, “dá-se-lhe um novo nome – ‘Exame Prévio’ – esconde-se-lhe a ação – proibida a frase ‘Visado pela Censura’”, mas na verdade tudo permanece igual. 

Quatro anos depois, como disse recentemente o comunista Domingos Abrantes em entrevista à Antena 1, o 25 de Abril “veio dar luz à vida de um povo”. Assim acontecia também nas redações. As portas abrem-se para a rua. Os jornais multiplicam edições, às vezes mais do que uma edição diária, os jornalistas trabalham noite e dia para levar informação do que se passa no país à população, sem censura. A informação é muita porque a agenda está na rua. O Programa do MFA acaba com a censura e exame prévio, garante a liberdade de reunião e de associação, de expressão e pensamento, tudo consagrado na Lei 2/74 de 14 de Maio. Mesmo antes de uma nova Lei de Imprensa, Rádio, Televisão, Teatro e Cinema, os plenários de redação multiplicam-se. Em 1976 os jornalistas adotam como regra essencial da profissão o respeito pelo seu Código Deontológico, os Conselhos de Redação, a profissão ganha dignidade. A Constituição da República Portuguesa de 1976 consagra a Liberdade de Expressão e Informação, a Liberdade de imprensa, salvaguarda a independência dos meios de comunicação social do Estado, perante o Governo e a Administração Pública, consagra o Direito de antena na Rádio, na Televisão dos partidos políticos, das organizações sindicais e profissionais. E depois, os direitos sindicais abrem a porta à consciência de classe e à proliferação de lutas pelos direitos laborais. Em suma, o Mundo das redações ganha finalmente Luz no Abril de 1974.

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